7.5.03













Tango riscado

Uma das mais lindas manifestações de arte popular em Buenos Aires é o filete, espécie de tango tipográfico de alto impacto visual, cheio de idas e vindas que, antigamente, costumava enfeitar os veículos portenhos. O filete nasceu em princípios do século passado, trazido por artesãos italianos e, aos poucos, começou a adquirir a sua feição argentina, incorporando aos floreios das letras imagens gaúchas e elementos do tango.

Nos anos 70 quase desapareceu, vítima de um burocrata que decidiu que ônibus e caminhões fileteados eram muito perigosos, pois poderiam distrair a atenção dos demais motoristas. Privados de seu principal mercado, muitos fileteadores deixaram o ofício, antes passado de pai para filho. Outros passaram a viver de trabalhos esporádicos, pintando placas e cartazes para bares e restaurantes.



Tomei conhecimento dessa arte quando conheci o Millôr, em 1980. Ao lado da porta do estúdio dele há uma placa que diz "Martiniano Arce, fileteador. Plaza Dorrego, San Telmo"; ela está lá desde sempre, trazida do Uruguai.

Martiniano Arce é talvez o mais famoso dos fileteadores portenhos. Sua arte ultrapassou as fronteiras da Argentina, ganhou mundo e reconhecimento -- embora mantenha o cunho prático e popular que sempre caracterizou o filete. Ele faz capas de discos e anúncios e, durante as Olimpíadas de Atlanta, foi convidado a filetear uma garrafa de Coca-Cola de dois metros de altura. Fiel ao seu ofício, já enfeitou dois ataúdes, um para ele e outro para a sua mulher, "para que a arte continue mesmo além da vida".

Eu acho isso trevas, mas os portenhos têm uma fixação de longa data com a morte -- vide as atribulações do cadáver de Evita (outra fixação!). Também não vamos esquecer que o point mais agitado de Buenos Aires fica em frente ao cemitério...



Há tempos o filete deixou de ser a deliciosa "arte sobre rodas" dos velhos tempos. Hoje freqüenta feiras de artesanato, museus e eventos especiais, e só resiste graças a uns poucos fileteadores teimosos, como Alfredo Genovese ou Alberto Pereira, que insistem em manter viva a tradição.

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