Vida e-pistolar
Vida e-pistolarFrom: MiguelitaNão estranhem muito esta mensagem; ela é parecidíssima com dezenas de outras que recebo, com a diferença que, em geral, o pessoal costuma me dar um prazo um pouco maior, de dois ou três dias, para entregar os ?seus? trabalhos. Ainda assim, e apesar da comovente fé em mim depositada pela Miguelita ? que acredita que, numa única noite, eu seria capaz de aprender como se edita um jornal on-line (coisa que nunca fiz na vida) e descrever todo o processo ? vocês não estariam lendo esta pequena amostra da minha vida e-pistolar se, por acaso, eu não a tivesse publicado no blog e isso não desencadeasse uma série de brincadeiras, considerações, ofensas e reflexões.
To: Cora
Subject: Pautas
Date: Thu, 20 Feb 2003 18:02:16 -0300
Prezada Sra. Cora Rónai Sou estudante do 4º período do curso de jornalismo do Centro Universitário e estou fazendo um trabalho sobre como são elaboradas as pautas de um jornal on-line. Gostaria muito de poder contar com colaboração de V.Sas, por isso, venho, por meio deste, solicitar duas pautas já cumpridas e um depoimento de como é tomada a decisão de pauta em um jornal on-line. No aguardo de um retorno,
Atenciosamente
Miguelita
P.S. A data de entrega do trabalho é dia 21/02/2003. Peço desculpas por estar mandando o e-mail em cima da hora, mas só consegui o endereço eletrônico de V.Sas agora.
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Um blog, vocês sabem, é uma espécie de diário na internet, onde a gente faz anotações de viagem, reclama do governo, comenta os filmes que vê, tricota, põe fotos dos gatos e dos netos e, eventualmente, até dá furos de reportagem ? com amplo espaço para troca de idéias com (e entre) os leitores. Cabe de tudo num blog, inclusive uma mensagem como a da Miguelita. Que reproduzi sem dizer nada, já que fala por si mesma.
Pois. Logo as pessoas começaram a se manifestar. ?Cora, que diabos você está fazendo que não manda o trabalho pronto pra essa menina????, perguntou o Flávio. ?Ela não disse a hora em que deve entregar o trabalho. Vai ver ainda dá tempo de a gente ajudar...? brincou o Cesar. E assim por diante. Até que reapareceu a Miguelita, em pessoa:
? Eu não deixei o meu trabalho para ser feito na última. Eu já havia mandado e-mails para diversos jornais on-line, mas acontece que ninguém me deu um retorno. O e-mail da Cora é que foi enviado em cima da hora, pois eu NÃO tinha o endereço eletrônico dela. Acho que vocês já devem ter sido estudantes e com certeza já precisaram da ajuda de outras pessoas. ?
Digamos que perdeu nova chance de ficar calada. Não só o meu e-mail está permanentemente no Globo On, como também é publicado neste bom e velho jornal de papel às segundas e quintas, chova ou faça sol. A partir daí, contudo, aconteceu um fenômeno curioso no quadro de comentários. Algumas pessoas ficaram indignadas, a maioria continuou brincando, mas outras se ?sensibilizaram? com a causa da Miguelita.
?Desculpe, Cora, não achei de bom tom a divulgação no blog de um e-mail que, num primeiro momento, [ é uma ] comunicação particular. Pra ser mais sincero, foi uma tremenda falta de ética?, disse o Alexandre, dando o tom para outras mensagens contra mim. ?Lamentável a falta de ética em publicar o e-mail?, chocou-se o Victor. ?Já que resolveu publicar o e-mail, Cora, poderia ter excluído o nome da menina. Faltou ética e foi uma atitude muito desrespeitosa?, repreendeu a Lulu. ?A colunista Cora Rónai já ganhou até ?prêmios? de defensora da liberdade de expressão. Deveria agora ganhar uma medalha de grosseria e intolerância?, disparou um anônimo. As mensagens mais virulentas, aliás, são sempre corajosamente anônimas.
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Fiquei perturbada com o teor dessas críticas, muito piores, a meu ver, do que a mensagem inicial da Miguelita. Não pelo que me ofendem, mas pelo que revelam da mentalidade do que é, afinal, parte da elite intelectual (o melhor!) do país. Tudo pode ser feito, qualquer contravenção é permitida ? desde que fique devidamente oculta. Mereço uma medalha pelas minhas grosseria e intolerância porque, em vez de varrer a letargia mental da Miguelita para baixo do tapete (ou, de preferência, fazer o trabalho por ela), publiquei a sua circular. Fraudar a universidade e mentir deixaram de ser atos condenáveis; pôr a fraude e a mentira em cima da mesa, porém, passou a ser o supra-sumo da falta de ética.
Vocês podem achar que estou fazendo uma tempestade em copo d’água, que esta é apenas uma historinha de blogs e de universitários que não teria por que chegar a um grande jornal. Acontece que é nessas pequenas coisas que se pode tomar o pulso de uma sociedade. A discussão gerada pelo trêfego start da Miguelita resumiu um tipo de moral cada vez mais comum entre nós, em que as fronteiras do que é e do que não é lícito, do que é e do que não é respeito, do que é e do que deixa de ser educação se confundem assustadoramente. No país que está sendo construído por essa moral ?Big Brother?, a regra de ouro é deixar rolar e acobertar a bagunça geral. Pau em quem parar e prestar atenção.
Sinceramente? Diante disso, a Lei de Gerson é um manual de ética.