30.11.09

No hospital de pássaros jainista


O hospital, ao lado do templo em Chandni Chowk, é bem movimentado.

Enquanto eu estava lá, apareceram três emergências: uma moça trouxe o pássaro de estimação que foi atacado de manhã por uma ave de rapina e estava muito machucado, um senhor trouxe uma maritaca embrulhada num paninho (não consegui descobrir o que havia acontecido) e um menino trouxe um pombo com a asa quebrada.

A média de casos diários é de 40 aves; o máximo admitido pelo hospital é de 60.

Infelizmente ninguém falava inglês, mas pelo que consegui compreender, os pássaros convalescentes e com problemas menos sérios são postos em gaiolas coletivas (enfermarias?); os casos mais graves vão para gaiolinhas miúdas individuais (quartos particulares?).

A moça que trouxe o pássaro de estimacão, e que falava um pouco de inglês, despediu-se dele. Os jainistas não devolvem pássaros aos donos, porque acreditam que todos os seres devem ser livres.

Os pombos eram maioria entre os pacientes, mas havia toda a espécie de pássaro, inclusive algumas aves de rapina, das quais o hospital trata meio que a contragosto, porque não são vegetarianas. Elas são alimentadas com queijo enquanto ficam no estaleiro.

Havia também cinco coelhos, que não sei como foram parar lá, mas que estavam sendo tratados com todo o carinho.

Uma vez por semana, os veterinários abrem uma janela no teto, e os pássaros que se sentem suficientemente bem batem as asas e vão embora. Muitos ficam pelas proximidades, já que o rango do hospital, ao contrário do que acontece nos hospitais de humanos, é muito bom.

O hospital cuida gratuitamente das aves, e sobrevive de doações, todas meticulosamente anotadas em recibos.

Devo dizer que, de todas as religiões da Índia, o jainismo é a minha favorita. Descontadas as maluquices dos adeptos mais radicais -- que, ainda assim, não fazem mal a ninguém -- este é um credo de grande tolerância, e a sua atitude para com os animais é de tirar o chapéu.

Update: Achei uma ótima matéria sobre o hospital! Está em inglês, AQUI.

Subi umas fotos para . Ainda quero voltar lá para fazer mais fotos e conversar com o pessoal, mas vou ligar antes para descobrir alguém que fale inglês.

Existe playground mais bonito?


Em qualquer país do Ocidente, esses túmulos estariam cercados e afastados da população. Aqui, há um vago guarda que anda entre um e outro, e olhe lá: apenas para garantir que ninguém leve uma pedra de souvenir.

O resultado é que essas são ruínas vivas, cheias de crianças ou de namorados, dependendo da hora.

Pode pôr a mão, sentar, ficar à vontade.

Algumas pessoas rabiscam os nomes nas paredes internas, mas suponho que a administração limpa tudo de tempos em tempos, porque os rabiscos não chegam a incomodar.

Notei essa intimidade entre gente e monumentos ao longo de toda a viagem. No próprio Taj Mahal os entalhes e alto-relevos estão ao alcance da mão; algumas flores entalhadas ficam até bem sujinhas de tantos afagos e, com o tempo, talvez fiquem um pouco gastas.

E daí?

Os prédios, as esculturas e os mausoléus envelhecem, assim como nós e como o mundo em que foram erguidos. Devem ser respeitados, mas não afastados dos descendentes de seus construtores e de quem gosta deles.

O mármore de uma escadaria tornada irregular pelos passos de incontáveis pés no correr dos séculos tem uma carga de emoção indescritível, assim como as estátuas gastas pelas mãos dos fiéis que julgam ser auspicioso tocá-las.

Posso estar na contramão de tudo o que se ensina no mundo em termos de conservação, mas acho maravilhosamente humana a forma como os indianos convivem com o seu passado.

Uma barulheira de pássaros!

Lodhi Gardens, um paraíso

Bem acolhedor... :-)

Portão do templo (pra Monca)

Trânsito de inverno

Um ponto de táxi

28.11.09

Pedicure com peixes

Atcha!!!

Design indiano

Parabéns, Ju, Monca e Leo!

 

Dias de festa: ontem foi aniversário da Jussara, hoje é aniversário da Monca e, ainda por cima, o DJ Leo passou no vestibular na Federal do RN!

É muito motivo para comemoração, não é não?

Parabéns, amigas do meu coração e querido Leo!

Apesar de estar do outro lado do mundo, graças ao nosso blogtequim me sinto bem pertinho de vocês; só não dá para dar aquele abraço apertado, mas os votos de felicidade são os mesmos.

Ou quase:

बधाईयां मेरे प्रिय है

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27.11.09

Um casamento na nossa rua!

Clique na foto para ver o álbum

Hoje foi um dia auspicioso para casamentos.

À tarde vi várias bandas na rua; à noite, aconteceu um casamento na casa ao lado da nossa.

Maravilhoso!

O noivo chegou numa carruagem puxada por cavalos brancos, com banda de música e fogos de artifício... que mais ouvi do que vi.

Até pegar a câmera e correr para a rua, eles já iam pelo fim.

A luz foi muito complicada de administrar e as fotos poderiam ter saído melhores se eu tivesse tido um tempinho para pensar e não houvesse tanta gente no meio do caminho (até aqui eles são mais altos do que eu!) mas, pelo menos, dão uma idéia do que se vê neste país de fato incrível.

Tem sempre alguem que cuida deles

Na loja de... celulares!

Patético

Tirando o aniversário do ataque terrorista em Mumbai no ano passado, a principal notícia dos jornais de hoje é a dos penetras que foram ao jantar da Casa Branca para o primeiro ministro Manmohan Singh.

O casal está sendo tratado como uma autêntica dupla de celebridades; eu não consigo deixar de considerá-lo uma dupla de desqualificados.

Ainda asim, não deixa de ser divertido (ou preocupante? ou ridículo? ou tudo ao mesmo tempo?) pensar que a super segurança da Casa Branca não tem competência para barrar dois penetras.

26.11.09

Fotos de pássaros

 

Novo álbum! AQUI.
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Não consegui identificar todos; mais tarde dou uma geral no livro de pássaros da Índia. Mas aceito colaboração de quem os conheça...

Luciana Pordeus, Plinio Senna, vocês podem me dar uma mãozinha?

Vacas profanas e padres brâmanes









O jantar da Associação de Professores de Português foi um evento simpático. Reuniu cerca de quarenta pessoas, entre professores, maridos e esposas, que se divertiram conversando em grupinhos, bebendo vinho português e comendo risoles. A associação aproveitou a ocasião para eleger o melhor professor (no caso, professora) e, no fim da noite, todos receberam CDs de bossa-nova. No cardápio, além da discussão dos eternos problemas da classe, lombo de porco à moda e bacalhoada, com sorvete de coco de sobremesa. Tudo muito familiar e corriqueiro, exceto pelo fato de estarmos a cinco horas e meia de Portugal, ou sete horas e meia do Brasil.

Goa fica na costa Oeste da Índia, mas como geografia nem sempre é destino, vive, culturalmente, num vago ponto latino. Há nomes portugueses espalhados por todo o estado e, em alguns bairros da capital, Pangim, o português continua sendo a língua de casa, embora os idiomas predominantes sejam o konkani e o inglês. O grande artista local, hoje verdadeira instituição indiana, é o desenhista Mario Miranda, goense de quatro costados e fala portuguesa; o estilista que pôs Goa no mapa da moda é Wendell Rodricks (Rodrigues), que veste os astros de Bollywood em linhos e algodões elegantes e despojados, com um viés mediterrâneo, na contramão dos brilhos e paetês orientais.

Ao contrário das tradicionais casas indianas, que terminam em terraços, as de Goa têm telhados de quatro águas, diretamente importados de Portugal; mas contribuíram para a arquitetura lusotropical (na definição de Gilberto Freyre) com os alpendres, criados para proteger o interior do aguaceiro das monções. Em frente à entrada, em vez dos habituais altares para divindades hindus, têm pequenos santuários encimados pela cruz, onde o santo de devoção é enfeitado pelas mesmas guirlandas alaranjadas que, no resto do país, enfeitam os Ganeshas, Shivas e Laksmis.

* * *

Há cruzes e igrejas por toda a parte, até no meio da selva. Quando a antiga capital mudou-se para o litoral em 1843, as casas foram desmontadas para que se aproveitassem as pedras, raras na região. As antigas igrejas, porém, permaneceram intocadas. Hoje são lindas de se ver, cercadas de árvores por todos os lados, e parecem o cenário perfeito para um filme de Indiana Jones.

* * *

Como em Portugal, os nomes de várias ruas vêm escritos em placas de azulejos; o chão é imaculadamente limpo, ao contrário do que se vê pelo resto da Índia, onde jogar lixo porta afora é tradição desde os tempos em que o lixo era orgânico e, por conseguinte, ótima comida para animais. Por falar nisso, não se vêem muitas vacas fora do pasto, e as pobres pouco têm de sagradas: um bom bife é apreciado em Goa, assim como a carne de porco, coisa que praticamente não se come em outra parte do subcontinente.

As mulheres usam cabelo curto, andam de salto e vestem-se com roupas ocidentais, ainda que bem-comportadas. Se não fosse pela cor da pele e pela fisionomia, podiam muito bem estar no interior de Portugal ou numa cidadezinha qualquer em Minas ou no Nordeste. A linguagem corporal local é cem por cento ocidental. Homens e mulheres se dão as mãos e se beijam quando se encontram ou se despedem; e ninguém se acocora ou se senta no chão, como é normal entre os demais indianos. No final da tarde, todos trazem cadeiras para a porta de casa, para aproveitar a fresca e pôr a conversa em dia.

* * *

Apesar do sotaque português, Goa tem muito mais de Brasil do que de Portugal. A vegetação é parecidíssima com a nossa, e a colonização portuguesa tratou de torná-las ainda mais semelhantes, levando para o Brasil manga e coco e trazendo para a Índia goiaba, mamão, caju, abacaxi e tomate, para não falar na onipresente pimenta malagueta.

O caju merece uma observação à parte. As castanhas são preparadas de diversas maneiras, algumas horrivelmente apimentadas; as passas e o caju em calda ainda não foram descobertos, assim como o suco e a cajuína. A explicação mais provável que encontro para essas graves lacunas gastronômicas é o aproveitamento das frutas para a produção de uma cachaça forte e cheirosa chamada feni que, segundo amigos que entendem do assunto, é o que há de bom.

* * *

O calor e as praias atraem gente de perna de fora do mundo inteiro. Calingute, que fica a meia hora de Pangim, podia ser Búzios, Trancoso ou Porto de Galinhas: concentra uma quantidade de pizzarias, restaurantes e botecos, abertos dia e noite. Entre uns e outros, dezenas de lojinhas de roupa de praia e cacarecos indianos, com a diferença que os donos não são argentinos, e os cacarecos indianos vêm ali da esquina. Na moda para estrangeiros, prevalece o hippie fino universal.

* * *

Goa foi colônia portuguesa até 1961. Com a independência, o português deixou de ser língua obrigatória. É falado hoje apenas pelos goeses quatrocentões e, se o estado continuar sendo ignorado pelos portugueses -- e, sobretudo, pelos brasileiros -- logo dará lugar ao inglês, que é o que os indianos usam para se comunicar mesmo entre si, quando vêm de estados diferentes.

Ainda assim, acho que mais importante do que a língua é a cultura como herança comum. Não é tanto o português que faz dos goeses os indianos exóticos que são, mas um jeito de ser que se reconhece na Bahia, no Rio ou em Luanda, em Cabo Verde ou em Moçambique. Vai ser uma pena se, um dia, Goa deixar de ser a mistura que é: afinal, onde mais se pode encontrar um padre brâmane?


(O Globo, Segundo Caderno, 26.11.2009)

Custa 253.800,00 rupias

O empório do governo

Pintam-se mãos de noivas

Sandálias baratinhas

Roupas chiques

Uma idéia engenhosa

Arrastando o sari no mercado

25.11.09

Fotos de bichos

 

Postei algumas fotos de bichos num álbum: AQUI.
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Grandes perrengues, pequenas causas

(ou: Há algum advogado na casa?)


Hoje passei o dia escrevendo, editando fotos e brigando com o banco.

Desde que cheguei à Índia, meu cartão Visa deu um defeito muito favorável ao Bradesco: não funciona em lojas e hotéis, mas saca dinheiro que é uma maravilha. Assim, sou obrigada a pagar taxa por cada transação financeira, e não ganho os pontos que deveria.

E isso que o cartão é um cartão todo metido chamado Infinite, que vem numa caixa enorme e promete mundos e fundos.

Bacana, né?

Segundo o banco, o cartão está bloqueado; segundo a Visa, está OK.

Em Goa, onde não havia ATM perto do hotel, só consegui pagar a conta porque os amigos me socorreram. Tivesse ido sozinha, e estaria presa no hotel, lavando pratos na cozinha até o fim dos tempos.

Já perdi a conta das horas que passei ao telefone (em DDI Índia-Brasil, outro detalhe bonitinho) tentando explicar que, num cartão decente, só podem existir duas opções: funciona ou não funciona. "Mais ou menos" não é alternativa em sistemas binários.

Hoje, apenas um mês depois de começada a novela, falei com a primeira pessoa que se lembrou de me pedir desculpas pelo contratempo, e ficou de mandar um cartão emergencial.

Too little, too late.

Minha primeira providência assim que voltar para casa vai ser cancelar esta porcaria.

24.11.09



O Luis Filipe, meu querido anfitrião, não é apenas diplomata; é também poeta dos bons, talento que não consegue disfarçar nem ao escrever prosa. Este texto foi publicado na revista Colóquio Letras, e eu o trouxe para cá para mostrar a vocês que lindo que é. A Didas da dedicatória é, claro, a Margarida.

As cidades em que vivo

Para a Didas, outra vez


As cidades atravessam o nosso tempo de vida e escrever delas é sempre uma despedida. Quem dirá o luto das cidades, a esplanada desaparecida da rotunda central, as novas fachadas de vidro e metal que nos vêm lembrar duramente que este já não é o nosso tempo? A minha cidade não existe, como o tempo não existe, no famoso paradoxo agostiniano: o passado já não é, o futuro ainda não é!

Eu tive cidades e deixei-as ir: não as enumero, visito-as. Mas tenho cidades acumuladas de memória e passado (as que já não são) e cidades erguidas num futuro imponderável e transparente (as que ainda não são). Poderia falar aqui de muitas cidades, como se andasse a remexer nas gavetas em velhas cartas de amor. Agora escolhi, num arriscado gesto de fidelidade ao presente, escrever da cidade onde vivo, uma cidade de cidades, feita de tantos espaços e tempos como os milhões que a cruzam dia a dia, num frenesim de colmeia.

Deli: que diria se dela me despedisse? A sensação que prevalece é a do movimento – como se as ruínas sobre as quais se construíram outras ruínas para sobre elas se construírem os verdadeiros templos do nosso século, os “shopping malls” (algo diferente dos “centros comerciais”), se evanescessem perante a força destes milhões que se movem, dentro dos seus carros de luxo, em cima das suas motocicletas, apinhados nos “rickshaws”, acumulados dentro de derruídos autocarros ou simplesmente caminhando ou acocorados no passeio ou comendo, fazendo a barba, tomando banho em plena rua. Cruzam-se as criancinhas das escolas, impecáveis nas suas fardas de molde britânico, com as crianças pedintes da rua, que chamam constantemente a atenção dos carros e dos passantes.

Recordarei mais a rua e a vida do que todos os túmulos mogóis ou esses enormes palácios que os ingleses construíram para sepultar o seu império (ó Shelley, ó Ozymandias!) e que servem hoje de cenário à complexa e intensa vida política da Índia, que é meu trabalho estudar e, tanto quanto possível, compreender. Recordarei mais os mercados de bairro (o Khan Market, onde sempre encontro o livro que quero, mesmo que tenha saído em Londres na semana passada!) do que os grandes “shopping malls” de Saket, onde os adolescentes passeiam impecáveis nas suas fardas de molde americano (“jeans” e “t-shirt”), cruzando-se com as crianças pedintes das ruas, que nos vendem flores, doces ou mapas.

Recordarei a Velha Delhi, onde tudo se vende nos passeios, à porta de lojas arruinadas, onde (ensinou-me o Luís Filipe Tomás!) se encontram os melhores alfarrabistas da Índia, onde as cabras passam no meio das revistas antigas expostas no passeio, mais do que os Lodhi Gardens, onde os intelectuais se encontram para tomar chá, fazer caminhadas entre os túmulos dos Lodhi (de que século estes Lodhi? - consultar mais logo o guia…) e ir ver as exposições ou os filmes europeus no Indian International Center ou na Alliance Française. Recordarei a Connaught Place, o centro do que não tem centro e o grande espaço ajardinado no interior do seu Inner Circle, por cima da moderníssima estação de metro. Recordarei os joalheiros, as lojas de tecidos, as explosões de cores por dentro de outras cores, as luzes efervescentes do Diwali, as tintas que deitam por cima de nós no Holi, as explosões de fogos de artifício sem razão conhecida (talvez mais um deus, dentre os trinta milhões…). Recordarei e guardarei para sempre comigo Ganesh, o deus com cabeça de elefante, o padroeiro dos escritores , que arrancou o seu grande dente de marfim para escrever o poema que lhe era ditado por um outro deus, como o Ion de Platão ou o Rilke no Duíno…

A religião está por toda a parte, nas pujas (orações) feitas nas lojas em pleno horário laboral, nos santos homens (sadhus) que passeiam pelas ruas alucinados e semi-nus, no cântico do muezzin na mesquita mais próxima, mas também na vasta, imponente e algo vazia catedral católica (as igrejas com santinhos e imagens de Nossa Senhora estão em Goa ou no Kerala) ou na igreja anglicana, que agora se chama “Church of India”…

Recordarei o carnaval (para lhe chamar assim, não me lembro do nome exacto da festa religiosa) muçulmano na Velha Deli, os carros alegóricos, todos ornamentados com figuras geométricas abstractas, os dançarinos que tocavam tambor até ao extremo do êxtase e do delírio (e até conseguirem as suas vinte rupias…), os doces partilhados na melhor doçaria ao pé da Grande Mesquita…

Recordarei a gentileza dos crentes no templo de Chattarpur (outros templos hindus há em que não podemos entrar), a delicadeza algo irónica, mas atenciosa, com que nos ensinavam os circuitos rituais, o caminho a tomar, os gestos a fazer, para cumprirmos a visita do seu templo, mundo que não nos pertence, mas a que nos não queriam deixar ficar inteiramente estranhos…

Recordarei o que, antes de partir para cá, li num livro do meu colega embaixador Pavan Varma (“Being Indian”): a religião hindu não é uma religião da passividade, o homem indiano não é o homem da renúncia. A deusa Laxmi pode entrar nas nossas casas e dar-nos a fortuna, assim saibamos nós investir nela as nossas oferendas (ideia tão racional como a dos recentes fundos derivados de Wall Street e que fez muito menos mal ao mundo…). A economia indiana cresce, mesmo em plena crise, “caminha radiosa sobre a sua própria miséria”(para citar Hoelderlin e ao mesmo tempo aludir com delicadeza às contradições terríveis deste país, numa elegante litotes ou “understatement”, que é como deve dizer um diplomata…).

A ideia do indiano como ser de renúncia e de negação do mundo veio-nos da leitura dos clássicos indianos feita, arrebatadamente, no século XIX, por Schopenhauer. Ora os clássicos, como sempre, dizem tudo e o seu contrário. O “Bhagavad Gita”, quase um diálogo socrático, é uma apologia da Guerra (Krishna) ou uma defesa da Paz (Arjuna)? Nem uma coisa nem outra, é uma exposição rigorosa do Dever (o nosso “Karma”). Um dever transcendental, diria que acima da própria lei moral e do seu céu estrelado…

O anoitecer levanta ainda mais ruído na cidade. Os meus colegas mais novos irão para uma dessas discotecas de Greater Kailash, onde se encontra o “beautiful people”, com direito a aparecer na coluna social (aqui diz-se “page three”) do “Delhi Times”. Penso no poeta Ghalib, um homem que assistiu aos massacres de 1857 e ao fim do Império Mogol. O túmulo dele está em Nizzamuddin, que é um bairro muçulmano por onde passamos agora, saídos dos Lodhi Gardens. É o poeta de Deli, sim, mas de uma Deli que já não existe, a Deli que a divisão da Índia feriu de morte, a Deli da antiga hegemonia muçulmana. Não, esta noite tenho um jantar em casa de uns amigos sikhs, desses que vieram fugidos do Paquistão em 1948, sem nada, a não ser a memória do saque e da violência, e que aqui em Deli refizeram a sua vida e refizeram Deli. O escritor da Deli de ontem e de hoje é um sikh, Khushwant Singh (cujo romance “Deli” está traduzido para português), a quem devemos também delicadas traduções para inglês da poesia urdu, nomeadamente de Ghalib. A Deli de ontem, essa, vive para sempre no tão proustiano, mas tão amargo, “Twilight in Delhi” do escritor de Deli, exilado desde 1948 no Paquistão, Ahmed Ali. Mais uma litotes? Política? Não, apenas literatura…

O jantar é longe, numa dessas “farms” enormes, a sul de Nova Deli. Com este trânsito, posso bem contar com uma hora até lá chegar! Vou olhar para a multidão e pensar num texto que prometi irresponsavelmente escrever para a “Colóquio Letras”. Um dia destes terei mesmo que o fazer. Mas a que cidade o irei finalmente prender, esse texto que virá: deixar-me-ei simplesmente ficar nesta noite de Deli, atravessada de luzes incoerentes e de criaturas improváveis, que enchem a rua e, ao atrasar o percurso, me provocam a imaginação?

Ou virá já do Rio de Janeiro esta criança que bate à janela do meu carro e me pede dinheiro por uma boneca esfarrapada que finge vender? Deixo-me arrastar num sonho acordado para a cidade do mundo onde mais intensamente vivi. O risco agora é deixar a escrita passar para o lado do confessional, o mundo dos afectos torna-se mais denso e a história pessoal impõe os seus ritmos e metros, dificulta-me a máscara ao me abrir ao riso… Mas de você, Rio de Janeiro, eu já me despedi. Escrevi mesmo dois livros para você, eu sei que não deu por nada, mas deixe para lá, ninguém mais deu…

Recordar o Rio? Eu não recordo nada. Sou parte dessa corrente que atravessa a minha vida, como o rio do Paulinho da Viola, e tudo de que é feito o Rio está presente em mim como coisa minha, feita intimidade ou mania, eu sou também daí. Mesmo que vocês não queiram.

Então penso no livro que estive hoje a ler, de Maitreyi Devi, e do verso do Bhagavad Gita a que ela se agarra para conseguir dar coerência ao seu passado e poder recuperar a identidade do seu amor: “unborn, eternal, everlasting, primeval, it does not die when the body dies”. Podemos sorrir da poeta de Calcutá, que inspirou “La nuit bengali” a Mircea Eliade… Mas não deixo de pensar na diferença entre a sedução feita de curiosidade e deslumbramento que me inspira Deli e essa espécie de amor fusional, “eterno e primordial”, que me leva a identificar-me agora com um Rio de Janeiro inventado por cinco anos de felicidade, vividos em comum…

Entramos agora na área das “farms”. Como é a estação dos casamentos, cavalos enfeitados e bandas de música sonâmbulas espalham-se pela rua, rumo às suas diferentes festas. O carro contorma os músicos, os cavaleiros, um ou outro búfalo desgarrado, estamos perto do nosso destino.

Se um comboio agora soltasse lentamente o seu apito sobre toda esta mirabolante cacofonia, eu imaginaria anacronicamente a tarde em que o escritor húngaro Frigyes Karinthy se sentou no Café Central, junto da Biblioteca Universitária de Budapeste, e começou a ouvir partirem comboios, um a seguir ao outro, num “ruído insistente, contínuo, suficientemente forte para cobrir todos os barulhos reais”. Karinthy pensou então que todos os órgãos do corpo humano poderiam ser dotados do dom da palavra e alguns meses mais tarde foi operado a um tumor no cérebro. Por mim, eu apenas esperava por vezes alguns amigos no Café Central de Budapeste, porque não há já tertúlias, os escritores húngaros agora até parece que moram todos em Berlim, mas à entrada do Café Central as velhas revistas dos anos 30 expostas em mostradores proclamam aos viajantes o esplendor das letras, como a estátua do Pessoa, a sentar-se com os turistas no Chiado, demonstra a todos nós o esplendor de Portugal. Aqui em Deli, onde os escritores se juntam nos Lodhi Gardens ou na Penguin Bookstore, talvez a partida dos comboios da estação de Nizzamuddin lhes possa algum dia evocar a terrível e extraordinária viagem à volta do seu crânio que em 1936 empreendeu Frigyes Karinthy. Mas espero sinceramente que não, a bem de todas as palavras que possam habitar nos seus corpos e virem a brilhar nas nossas leituras.

Parece que chegámos, o motorista insiste em tirar-me do meu sono (ou sonho acordado?). À porta da “farm”, esperam os criados vestidos de marajás. “I call you later” murmuro para o motorista - mais uma função começa para nós.

Abro finalmente a porta do carro e deixo-me guiar pelos criados engalanados até aos meus amigos, brilhantes nos seus turbantes coloridos, elas nos seus saris, atraentes como a luz e a promessa da carne (“it does not die when the body dies”)… Agora eu sou daqui. Tudo agora é passado e despedida. Tudo um dia será eterno e primordial… (Luis Filipe Castro Mendes)

À espera das malas

Ótima companhia aérea!

Adorei a Kingfisher. Os aviões são novos e têm boa manutenção, o serviço de bordo é super caprichado mesmo na econômica, as comissárias são atenciosas.

Nota 10!

No Brasil não temos nada sequer remotamente parecido.

(Não sobrou tempo pra ir à praia)

Adeus ao paraíso goense

23.11.09

Teve dança

Tem chuva de flores

Presidindo o júri: o brasileiro João Batista de Andrade

Ele é o de camisa bege -- recém-comprada. Tinha acabado de chegar do Brasil, e a companhia aérea perdeu a mala.

Festival de Cinema de Goa

Palanquim na sala

Sala de almoço

O pátio interno

A sala da frente

Varanda

A casa do desenhista Mário Miranda

A água é quentinha

Um endereço para lembrar

Pratos descartáveis

Um folgado se diverte na água

O almoço da Spice Farm