30.11.10

Uma grande reportagem escrita no Facebook

James (de camisa branca) e Joe (de camisa preta) conversam 
com dois dos migrantes que acompanham


A imprensa já descobriu as redes sociais como ferramentas de trabalho há algum tempo: tanto o Twitter quanto o Facebook têm se provado excelentes pontos de interação com leitores e busca de fontes para o cotidiano. Mas Joe Leahy e James Fontanella-Khan, do “Financial Times”, deram um passo adiante, e estão usando o Facebook para desenvolver uma reportagem que será publicada em dezembro. Os dois trabalham na sucursal de Mumbai do jornal inglês, e têm postado regularmente as várias etapas da apuração sobre a vida de trabalhadores que saem de pequenas aldeias para tentar a sorte na cidade grande.

 Joe e James vêm acompanhando, há cerca de um mês, o dia a dia de um grupo de imigrantes; alguns desistiram de Mumbai em pouco tempo, e voltaram para casa. A matéria, com seus avanços e contratempos, vem sendo trabalhada como qualquer matéria do gênero – exceto pelo fato de os leitores fazerem parte do seu desenvolvimento. Esta é a primeira vez que um grande jornal usa um espaço público como o Facebook na construção de uma reportagem; esta é também a primeira vez em que os repórteres se vêem diante de críticas e palpites de leitores antes mesmo do seu trabalho ser oficialmente publicado pelo jornal. Conversei por email com James, que acumula a função de diretor da sucursal, para saber como vai a experiência.

O GLOBO - Como surgiu a idéia de usar o Facebook?
JAMES FONTANELLA-KHAN - Joe Leahy tinha acabado de escrever uma matéria sobre o numero crescente de empresas que vem usando sistemas como Facebook para comunicação interna, e descobriu que a razão disso é que um número cada vez maior de funcionários acha mais simples usar as redes sociais do que participar de reuniões movidas a slides de Power-point. Conversando sobre o assunto  achamos que seria interessante tentar fazer algo parecido com o nosso projeto “Mumbai: vivendo o sonho”, que, em princípio, seria apenas uma matéria convencional. Decidimos que a idéia era boa, e logo partimos para o estágio seguinte, abrindo uma página no Facebook para compartilhar os nossos pontos de vista e o processo de criação da matéria (http://on.fb.me/bombaim). A idéia era criar uma comunidade em torno do que estávamos fazendo e, ao mesmo tempo, atingir pessoas que não são necessariamente leitoras do “Financial Times”. Poderíamos igualmente ter usado um blog, mas o Facebook tem funções mais amigáveis, além de facilitar a formação de comunidades.

O GLOBO - Como tem sido a experiência de trabalhar no Facebook o que vai ser, afinal, uma reportagem tradicional? A participação dos leitores ajuda?
JAMES FONTANELLA-KHAN - Como mecanismo para compartilhar notas e trabalhar em grupo o Facebook é excelente, e facilitou muito a minha vida e a do Joe. Mas o mais importante mesmo tem sido a participação coletiva. Alguns “amigos” fizeram críticas muito construtivas e levantaram questões éticas da maior seriedade. Um dos leitores, por exemplo, perguntou qual era a diferença entre o que nós estávamos fazendo e a versão indiana do Big Brother. Outro questionou a forma como estávamos conduzindo a apuração.  Ser transparente implica correr riscos, mas os benefícios são maiores. Os comentários nos ajudaram a manter o foco e a sermos abertos, ao mesmo tempo em que nos fizeram pensar em profundidade sobre o que estávamos fazendo, e como estávamos fazendo. A nossa responsabilidade para com os leitores aumentou. Em suma: sugiro a outros jornalistas tentarem a mesma experiência.

O GLOBO - Você acha que o futuro do jornalismo passa necessariamente pelas redes sociais, ou vê isso como uma experiência isolada?
JAMES FONTANELLA-KHAN - Acho que a nossa experiência não deve ser um fenômeno isolado. A chamada grande imprensa deve interagir cada vez mais com as redes sociais, que criaram um novo espaço de comunicação e interação. Elas vieram para ficar, e o jornalismo deve aprender a conviver com elas. Sob este aspecto, aliás, estou cada vez mais convencido de que as redes sociais representam uma nova oportunidade para o jornalismo, especialmente nesses tempos em que a leitura de jornais vem diminuindo (a Índia sendo uma notável exceção). No “Financial Times” nós adotamos cedo todas as formas de novas mídias, e hoje a nossa operação é plenamente integrada. Isso significa que não há mais diferenças entre o impresso e o online. O FT participa ativamente do Facebook, do Twitter e do YouTube, mas até aqui usávamos essas ferramentas apenas para postar o nosso trabalho. Com “Mumbai: vivendo o sonho” galgamos um novo patamar. Quisemos contar a história primeiro no Facebook para construir uma comunidade com os nossos leitores, e torcemos para que este venha a ser um modelo adotado por outros repórteres, em eventuais projetos especiais.

O GLOBO - Trabalhar no ambiente de uma rede como o Facebook criou alguma dificuldade inesperada, ou tudo está indo conforme planejado – na medida em que se podem planejar projetos assim?
JAMES FONTANELLA-KHAN - As coisas estão indo bem. Para ser sincero, temos enfrentado os mesmos problemas que enfrentaríamos num projeto convencional. Os acontecimentos não estão vinculados à mídia na qual trabalhamos. No fundo, escrever no Facebook está até nos ajudando a desenvolver a matéria de forma mais estruturada, em vez de ter que espremer tudo no espaço de uma semana.

O GLOBO - Por quanto tempo você acha que vão conseguir manter o ritmo? Já tem alguma idéia de quanto tempo vão levar até terminar a reportagem?
JAMES FONTANELLA-KHAN - A matéria tem que sair antes do fim do ano. De qualquer forma, nossos planos, por enquanto, são de manter a página no ar. Gostaríamos que, eventualmente, ela se tornasse um ponto de convergência para a discussão da questão da migração.

O GLOBO - Qual é a freqüência com que vocês entram em contato com os imigrantes que estão acompanhando?
JAMES FONTANELLA-KHAN - Entramos em contato praticamente todo dia, embora nem sempre a gente escreva sobre isso. Nós ficamos sabendo como eles vão e que progressos têm feito. Não queremos transformar a matéria num projeto de pesquisa tipo Big Brother.

O GLOBO - Vocês vão procurar outros imigrantes para substituir os que já desistiram de Mumbai e voltaram para as suas aldeias?
JAMES FONTANELLA-KHAN - Estamos pensando em acompanhar mais algumas pessoas, mas não vamos mais viajar até as aldeias e seguir os imigrantes desde a partida, como fizemos no começo. Parte da matéria é, justamente, o fato de que alguns não agüentaram a barra e foram embora. Isso mostra as dimensões das dificuldades que eles e tantos outros como eles têm que enfrentar.


(O Globo, Economia, 26.11.2010)


27.11.10

iPad: paixão e aplicativos

















O ataque de bom-senso que me impediu de comprar o Kindle assim que saiu também me manteve longe do iPad por uns tempos: ando perturbada com a quantidade de gadgets inúteis que povoam os meus armários e gavetas, e culpada com a quantidade de lixo digital que, à custa de sucessivos upgrades, ajudo a gerar.

Por outro lado, nem tudo na vida é bom-senso, e há um momento em que a curiosidade manda o juízo às favas. Depois de ver tantos amigos tão perdidamente apaixonados pelos seus tablets, não consegui mais ficar de fora da brincadeira, e comprei um iPad.

Primeiro ponto: eu preciso de um iPad? Honesta e sinceramente não, e acho que isso se aplica à maioria dos consumidores. Tudo o que se faz com um iPad se pode fazer, com maior ou menor facilidade, no computador ou no celular. Segundo ponto: tendo um iPad, eu abriria mão dele? De jeito nenhum – e, novamente, acho que esse é o caso de quase todos que o possuem. O iPad, um dos melhores brinquedos que já tive, é a inutilidade mais divertida e indispensável dos últimos tempos, ainda mais para quem gosta de mídias sociais.

A alma do iPad, como a iphone, está nos aplicativos – e, para o Twitter, há uma quantidade. Gosto especialmente de dois : o do próprio Twitter, que é grátis, e o TwitBird (mais parecido com a versão antiga e mais simples do Twitter), que pode ser grátis ou pago. Estou usando o grátis e estou contente. O Echofon, meu favorito do iPhone, só existe em versão paga (US$ 5); não compensa. Para o Facebook, a melhor pedida é o Friendly, que merece o dólar da versão Pro, embora exista em versão lite, com anúncios.

Ver filmes e seriados no Ipad pode virar vício, mas confesso que ainda não encontrei o player ideal. O bom e velho VLC, que lê até pedra (como diz o Marcelo Temporal), volta e meia se recusa a reconhecer as legendas, mesmo problema do OPlayerHD. Como é sabido, tanto arquivos .avi (dos filmes) quanto .srt (das legendas) devem ter o mesmíssimo nome, mas nem isso tem funcionado, embora os conjuntos se apresentem sem problemas no computador. O companheiro ideal para tantas séries e filmes é, tradicionalmente, o IMDB – que desenvolveu um aplicativozinho correto.

Outro vício? O Zinio, banca virtual (grátis) em que se encontram revistas (pagas) do mundo todo. Fiz uma assinatura da National Geographic e agora me confronto com um típico dilema contemporâneo. Nunca joguei fora uma National Geographic de papel, mas como vou proceder com as suas irmãs virtuais? Deixa-se tudo no HD, ou deleta-se sem dó nem piedade? Já o Newspapers põe ao alcance do usuário todos os jornais de conteúdo aberto do mundo – mas, em compensação, custa US$ 3. Vale!

O aplicativo mais interessante que encontrei, disparado, chama-se Flipboard, e é gratuito. Essencialmente, é um agregador de páginas, notícias e mídias sociais, ao qual se podem juntar blogs, jornais, contas do Twitter e do Facebook. Cada item é caprichosamente diagramado como se fosse uma revista.  Podem-se gastar horas sem fim só virando as suas páginas.

Até agora, o meu maior investimento em software foi o Documents to Go, que custa US$ 17 e permite ler, criar e editar documentos do Microsoft Office. O iPad não é uma máquina de trabalho, mas é bom ter a possibilidade de usá-lo a sério.

Outra mão na roda é o Evernote, tão útil e tão bom que não dá para entender porque ainda é gratuito: nele se podem tomar notas, juntar fotos como memos visuais, fazer gravações. O material é sincronizado com a página do programa na web, de modo que, de qualquer aparelho que seja, e onde quer que esteja, o usuário tem acesso às suas anotações.

Para quem não se incomoda em ler livros na tela, a Amazon disponibiliza, de graça, o software do Kindle; mas o iPad está longe de ser o leitor ideal, e nesse quesito perde para os livros tradicionais e para o próprio Kindle, mais suave nos olhos.

A menos, claro, que o livro seja algo como a gloriosa edição de Alice para o iPad, a amostra mais eloqüente de um lindo caminho a ser trilhado. 

(O Globo, Economia, 27.11.2010)

25.11.10

Minha bronca com a evolução



Há alguns milhares de anos, quando o homem e a mulher – estes, que nós somos – apareceram na face do planeta, a comida era um combustível necessário, mas desprovido de graça e, sobretudo, difícil de obter. Catar vegetais era relativamente fácil, desde que existissem vegetais comestíveis na área; e suponho que o fato de terem sido vistos primeiro por pássaros e por pragas variadas não era problema. Até outro dia, mas outro dia mesmo, encontrar bicho na goiaba era o que havia de comum, e não causava nojo em ninguém, exceto quando, sem querer, mordia-se o bicho.

Carne, para aqueles bípedes ancestrais, era caso mais complicado. Imagino que, antes da invenção da caça, nossos primeiros antepassados serviam-se, como as hienas, das sobras da caça alheia, muitas vezes bem além do prazo de validade. O que havia era comido cru, porque carne não nasce assada e até alguém associar o fogo ao filé passaram-se muitos e muitos e muitos anos.

As pessoas de uma mesma tribo dividiam a comida e jantavam juntas, como fazem em geral os animais gregários. Não é difícil imaginar um clima de festa, porque comida não era coisa que sobrasse; além disso, clima de festa em torno de comida é o que mais se vê nos filmes de vida selvagem da Nat Geo. Prazer em comer, porém, exceto pelo ato básico -- e vital -- de matar a fome, devia ser inexistente. Garfinhos do Rio Show, nem pensar.

Pois este animal que se alimentava tão mal (e, dependendo da localização geográfica, com tão pouca freqüência), era o projeto original da fábrica: um corpo acostumado a se mover o tempo todo em busca de alimento, mas, paradoxalmente, movido a um mínimo de energia.

* * *

Um dia, alguém deixou cair um pedaço de carne no fogo, ou um incêndio florestal deixou umas carcaças tostadas; e o homem viu que o churrasco era bom. Em outros cantos, ou talvez nos mesmos, outros bípedes comiam moluscos ou peixes e descobriam o sabor do sal, que ganhou tal importância com o passar dos milênios que está na origem da palavra salário.

(Reza a lenda que os antigos soldados romanos recebiam seu pagamento em sal; não é verdade. Como o sal era uma das principais despesas de então, salarium era simplesmente o dinheiro com o qual, entre outras coisas, os soldados compravam sal. Mal comparando, é como chamar de “ganha-pão” ao emprego que nos sustenta.)

* * *

Pois bem. Descobertos o fogo e o sal, estava dado um passo gigantesco na modificação das especificações com que a humanidade saiu da forma. O sal não é apenas um dos primeiros temperos conhecidos, é também um dos primeiros conservantes, e a possibilidade de salgar a carne e os peixes garantia um estoque maior e mais constante de comida. Mais para a frente, alguém descobriu que as sementes germinavam e que era possível reproduzir certos vegetais, inventando a agricultura, uma nova fonte de alimento e, de quebra, todo um estilo de vida. Logo os primeiros quadrúpedes eram domesticados, e lá ficava a carne, ruminando pelos pastos. Daí para o  bœuf bourguignon foi um passo.

* * *

E por que estou falando disso? Porque, tendo nos dado o engenho e a arte de inventar algo tão sofisticado quanto a culinária, a natureza nos manteve com o mesmo organismo daqueles bípedes que caçavam javali a tapa. Ora, é lógico que essa combinação não podia dar certo! Por um lado, inventamos os meios de transporte e temos os temperos e as receitas que tornam o nosso combustível uma irresistível fonte de prazer; por outro, conservamos um corpo que continua a pedir movimento contínuo, e que não consegue (ainda!) processar o excesso de calorias. Está tudo errado.

* * *

Quem já fez dieta e emagreceu sabe que, saindo um tiquinho que seja da linha, os quilos voltam a uma velocidade alarmante. A mim explicaram que isso é porque o organismo está condicionado, desde a Era Glacial, a se precaver contra futuras faltas de alimento (que é o que ocorre durante a dieta). Mas, caramba, a Era Glacial foi há 20 mil anos! Será que ao longo de todo esse tempo a natureza não podia ter percebido que uma certa espécie deu de evoluir de forma esquisita?

Sim, vocês adivinharam: continuo de regime, continuo sofrendo as conseqüências desastrosas das lembranças da Era Glacial guardadas pelo meu organismo e cada vez fico mais convencida de que, se a evolução fosse mesmo algo evoluído,  a Kate Moss seria regra, e não exceção.

* * *

Há uma nova capivara na Lagoa!

Há cerca de dois meses, um leitor escreveu contando que a viu de manhã cedinho, ali para os lados do Caiçaras. Fui lá algumas vezes ao cair da tarde, horário muito apreciado pelas capivaras, procurei bem e nada. Sei que elas se escondem muito bem mas, apesar disso, cheguei a achar que o leitor tinha visto algum outro bicho qualquer, quem sabe um cachorro grande. Há duas semanas, outro leitor mandou um email semelhante: capivara avistada perto do Vasco.   

Na semana passada, enfim, ela apareceu no Cantagalo, perto do Palaphita, e foi vista por várias pessoas. É grande e bonita, muito arisca, e está com um pequeno ferimento nas costas, nada de muito sério. Como acontece com as capivaras que vêm para a Lagoa, ninguém tem idéia de onde possa ter surgido.

Que seja bem-vinda.


(O Globo, Segundo Caderno, 25.11.2010)

20.11.10

A rede e os seus perigos

“Um dia, todos os jovens vão poder mudar de nome automaticamente ao chegar à idade adulta, para fugir das besteiras juvenis armazenadas nas páginas de redes sociais dos amigos.” Já se disse muita bobagem sobre os perigos da internet, mas a frase de Eric Schmidt, CEO do Google, tornou-se um clássico instantâneo – e foi lembrada, mais uma vez, durante o seminário “Crianças e internet: desafios e oportunidades na sociedade da informação”, realizado na última terça-feira, em Brasília, pelo Itamaraty, pela Unesco e pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). A internet é perigosa, mas nem tanto, e – além de discutir políticas governamentais e sociais – o seminário deixou claro que nada é tão importante para garantir a segurança das crianças quanto a atenção dos pais. Em suma: até nisso a internet é um reflexo do mundo cá fora.

A educação dos pais a respeito da rede e a educação dos filhos através dos pais são as molas mestras para um ambiente mais seguro. Carlos Gregorio, do Instituto de Investigacion para La Justicia, da Argentina, fez uma ótima analogia trazendo para a mesa de debates uma simples sacola de plástico, daquelas que se usam nos hotéis para a roupa suja. Nos anos 60, quando os sacos plásticos substituíram os de papel, inúmeras crianças morreram por colocá-los na cabeça e se asfixiarem. É por isso que, até hoje, tantos sacos plásticos ainda trazem a advertência de que não são brinquedos, embora a cultura popular já tenha assimilado completamente a lição. Não existem mais estatísticas a respeito de crianças acidentalmente sufocadas por sacos plásticos: eis o poder da educação. Ainda assim, muitos deles, como os das lavanderias de hotel e os de embalagem de eletrodomésticos, trazem pequenos furos – para permitir a passagem do ar. Moral da história? Educação é realmente essencial, mas também é importante que a indústria faça a sua parte. Não precisa ser nada radical, mas pequenas mudanças ajudam, aos poucos, a aperfeiçoar o processo.

Exemplo? A ferramenta Safe Search, da Google, representada por seu diretor de políticas públicas para a América Latina, John Burchett. O Safe Search é um filtro que bloqueia páginas que contenham conteúdo sexual explícito, e que os pais podem escolher na opção “Preferências” do Google. Quando se usa o Chrome, browser da casa, o Safe Search pode ser trancado por senha, de modo a não poder ser desativado por outros usuários da mesma máquina. Com um detalhe bem pensado: quando ele está ativo, há bolas coloridas no alto da página, de modo que, mesmo olhando de longe, os pais podem ver se os filhos estão fazendo uma pesquisa segura.

Como todos os mecanismos de proteção existentes – e o próprio conceito geral de proteção às crianças na rede – este resolve parte das ameaças de uma exposição a temas de cunho sexual; mas há outros perigos dos quais nem nos damos conta. Fiquei muito impressionada com a palestra de Isabella Henriques, do Instituto Alana, sobre a overdose de mensagens comerciais oferecida à criançada online. Quase todo alimento infantil tem um site com jogos, brincadeiras, atrações. Resultado: as crianças, que não sabem diferenciar propaganda de conteúdo, ficam expostas durante horas a aparentemente inocentes anúncios de sucrilhos, refrigerantes, bebidas achocolatadas, biscoitos, salgadinhos – tudo porcaria. Depois a gente estranha a epidemia de obesidade infantil...

O consumismo desenfreado também foi apontado por Marilia Maciel, do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas: novamente, a questão é a quantidade de publicidade dirigida a crianças e jovens na internet, e a atração que a criançada sente pelos anúncios. Mas ela atribui uma parcela da culpa às gerações anteriores, que não souberam (ou não puderam) preservar os espaços tradicionalmente reservados à garotada, como as ruas e praças, que deixaram de ser áreas seguras. A idéia de lazer da família contemporânea é ir passear no shopping, templo máximo do consumismo. A “mensagem” desse tipo de programa é clara: diversão é consumo.

Será que é isso mesmo que a gente quer que as crianças aprendam?


(O Globo, Economia, 20.11.2010)  

18.11.10

A traição de House




















A sétima temporada de House começou há algumas semanas, mas só agora assisti à sexta, que finalmente saiu em DVD. A série é das poucas que conseguiu me fisgar por mais de uma temporada, mas tenho sérias dúvidas se isso teria acontecido se essa sexta temporada tivesse sido exibida no primeiro ano. A diferença do “velho” House para o “novo” é tão deprimente que a impressão que se tem é que mudaram a equipe de produção inteira. (Conferi: tirando certa rotação de diretores e de roteiristas, que sempre existiu, tudo está, em tese, como sempre esteve.)

Nas primeiras temporadas, os casos médicos eram tão bons que eu saía direto para o Google, para descobrir mais sobre alguma daquelas horrendas moléstias que, sabe-se lá, podia estar escondida numa inocente embalagem na cozinha. Havia suspense nas histórias dos pacientes, e os procedimentos da equipe, embora incompreensíveis para a minha falta de conhecimento especializado, faziam sentido. Muitos faziam sentido até para os profissionais da área – esbarrei em bons fóruns americanos onde médicos discutiam acaloradamente os casos apresentados. Por outro lado, sabia-se pouco da vida pessoal de House e da equipe – apenas o suficiente para mantê-los interessantes e um tanto misteriosos.

Agora tudo mudou. Os casos médicos perderam o suspense, o capricho visual – com aquelas câmeras entrando corpo adentro – e, sobretudo, qualquer aparência de lógica. As discussões entre House e a equipe viraram um vale-tudo, em que nomes complicadíssimos são jogados de lá para cá, sem que se possa sequer imaginar do que aquela gente está falando – até porque os tratamentos são totalmente randômicos. Os pacientes recebem toda a espécie de remédio, são cortados, operados e transplantados a três por quatro -- até que a solução para os seus casos caia do céu, sem qualquer ligação aparente com as discussões da equipe ou os cuidados administrados. Virou CTI de hospital público. Quem precisa de gênio da medicina?

E, por falar nele, o próprio House está diferente. No primeiro (e, por acaso, excelente) episódio da temporada, em que estava internado para se tratar da dependência do Vicodin, ele ainda foi o velho House de sempre, lutando contra o sistema e tentando agir à sua maneira. Foi ótima dramaturgia jogá-lo num hospital onde não podia fazer nada além de obedecer, como qualquer paciente, e melhor dramaturgia ainda confrontá-lo com alguém que não só não cedia aos seus caprichos como podia mais do que ele (o psiquiatra Dr. Nolan, interpretado por Andre Braugher).

Infelizmente House teve alta no fim do episódio e a ação voltou para o hospital de costume – e aí só restou ao público perceber que o maluco genial se transformou num caso insuportável de adolescência retardada, exceção feita ao último episódio, ridículo, em que virou um sujeito bonzinho e piegas, totalmente contrário ao que conhecemos. Que decepção! O House dependente químico era muito melhor do que o House movido a analgésicos; resta saber o que os roteiristas estão tomando, ou deixaram de tomar.

Enquanto isso, a série de mistérios médicos foi dando lugar a um clima de novelão, focado nos problemas pessoais da equipe. Péssima idéia: mal comparando, é como se, a certa altura, Conan Doyle jogasse para o alto os casos policiais e passasse a se dedicar apenas à vida sentimental de Sherlock Holmes e do Dr. Watson, os inspiradores de House e Wilson.

Hugh Laurie continua maravilhoso, e não há mancada de roteiro que consiga apagar o seu brilho. Mas a vida particular de Chase (Jesse Spencer) e de Cameron (Jennifer Morrison) não tem a menor graça, a relação de Foreman (Omar Epps) e de Thirteen (Olivia Wilde) é o que há de forçado, Taub (Peter Jacobson) e a mulher são uns chatos entre quatro paredes e as intimidades de Cuddy (Lisa Edelstein) e de Lucas (Michael Weston) são mais informação do que a gente precisa. Quem quer ver casais em conflito já tem uma quantidade de melodramas para assistir, e não precisa de House.

Ora muito bem: se tudo está esta pasmaceira, para que acompanhar a temporada inteira? Fiquei me perguntando isso ao longo de vários episódios, e não encontrei resposta certa. Pode ser por familiaridade, porque é difícil abandonar velhos hábitos; ou pode ser porque, mesmo capenga (sem trocadilho; ou com), House ainda continua sendo uma das melhores séries em cartaz.

* * *

Enquanto isso, há algumas semanas, rola a sétima temporada na Universal. Assisti ao primeiro episódio; gostei e não gostei. Gostei que House e Cuddy foram, até que enfim!, aos finalmentes; mas não gostei nada do House carente e apaixonado que acha que a relação não vai dar certo porque, mais cedo ou mais tarde, Cuddy vai se lembrar de tudo o que ele aprontou com ela e vai terminar o caso. Este não é o House, caramba, é um estranho que se meteu no roteiro! Algum fã das antigas consegue imaginar House sequer discutindo a relação?!

* * *

Leitores que conhecem as coisas pelos nomes certos me chamaram às falas por causa da crônica da semana passada. Lendo o email do Victor Koifman vocês vão entender por que:

“Bueiro é por onde drena (se escoa) a água pluvial. Chamar de "tampas de bueiro" as tampas das diversas "visitas" dos sistemas públicos de infra-estrutura urbana (água, esgotos sanitários, drenagem pluvial, telefone, gás e eletricidade) é mais ou menos como chegar numa loja de Informática e pedir "uma televisão do computador" ao invés de um monitor.”

Touchée.


(O Globo, Segundo Caderno, 18.11.2010)

15.11.10

Um teste pro Tiririca

De aorcdo com uma peqsiusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as lteras de uma plravaa etãso, a úncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia Lteras etejasm no lgaur crteo. O rseto pdoe ser uma bçguana ttaol, que vcoê anida pdoe ler sem pobrlmea. Itso é poqrue nós não lmeos cdaa Ltera isladoa, mas a plravaa cmoo um tdoo.

Todos os sotaques


Site muito interessante, com milhares de sotaques do mundo todo, em ingles: AQUI.

13.11.10

Kindle: contato imediato




















A casa de qualquer amante de gadgets que tenha um mínimo de recursos para dar asas à sua paixão acaba, com o tempo, se transformando numa espécie de cemitério de antigas tecnologias. A minha casa não é exceção. Há velhos PDAs e celulares de diversos tipos e idades pelas gavetas, dispositivos de armazenagem de vários tamanhos e capacidades pelos armários e um baú inteiro de placas, conversores e cabos paralelos e seriais que não tenho coragem de jogar fora porque, afinal, nunca se sabe quando podem tornar a ser úteis.

Há também, num cantinho esquecido do escritório, um objeto meio retangular, do tamanho de um livro, com quatro centímetros de largura e um lado arredondado, que atende pelo nome de Rocket eBook. Foi lançado em 1999 e chegou a ser muito popular no seu tempo como leitor de livros eletrônicos. Era um prodígio, podia armazenar bem uns dez romances, e eu fiquei empolgada com essa possibilidade – mas, na vida real, não consegui sequer chegar à metade de um dos livros que armazenei nele. A tela ruim me cansou, e o peso de quase 700 gramas também não ajudou a consolidar nossa relação. Não tive coragem de jogá-lo fora, achando que um dia, quem sabe, ele me poderia ser útil numa viagem. Os anos foram passando, continuei viajando com dois ou três livros na mala e o Rocket eBook continuou encostado.

O seu fantasma, porém, me assombrou por muito tempo. Tanto que, quando a Amazon lançou o Kindle, não tive coragem de ir atrás. “Vai ser mais um gadget morto numa gaveta”, pensei com os meus pendrives. E assim é que fiquei olhando o movimento dos ebooks de longe, às vezes com um pouco de cobiça, mas de modo geral muito tranqüila na minha relação com os velhos livros de papel.

Há um mês, porém, uma amiga que não se entendeu com o Kindle me emprestou o brinquedo. É um Kindle da segunda geração, portanto já ultrapassado pelo espertíssimo Kindle da última geração, que não só é mais leve e tem tela com melhor contraste, como vem, de fábrica, com 3G gratuito no mundo todo, inclusive Brasil – uma perdição para quem acredita em gratificação instantânea.

Esta foi, aliás, a primeira sensação que experimentei com ele. Alguém me recomendou um livro, e em vez de encomendar o exemplar em papel, como teria feito normalmente, baixei a versão eletrônica. Ao contrário do que eu esperava, o preço foi um dólar mais caro do que o da edição tradicional (que estava com desconto), mas o que economizei no transporte foi ótimo e, maravilha das maravilhas, em alguns minutos eu já estava mergulhada na leitura.

Porém... sim, a minha experiência com o Kindle tem um porém, um grande porém – ele não é um livro, séria falha para quem, como eu, tanto ama o objeto em papel. Kindle e livros não se comparam sensorialmente. Quem pega um livro em papel sabe, imediatamente, quanta leitura tem pela frente. Embora o Kindle mostre numa barrinha a percentagem de páginas lidas, não é a mesma coisa. O Kindle perde também num quesito básico para o leitor contumaz: a folheada que se dá antes da leitura, em que se pescam frases aqui e ali, numa espécie de trailer do livro.

Se eu tivesse comprado um Kindle, ele não seria mais um gadget no cemitério; eu o usaria para ler artigos encontrados na internet (nisso ele é excelente) e, eventualmente para baixar livros que não tivesse paciência para esperar pelo correio. Talvez também o levasse em viagens, em vez dos volumes que habitualmente carrego. De qualquer forma, depois de um mês de convivência, já sei que, para mim, ele é apenas o complemento da biblioteca, uma forma a mais de buscar livros -- mas não a fonte primária de toda a leitura. 


(O Globo, Economia, 13.11.2010)
  

11.11.10

Chão de ferro





















Sempre gostei de tampas de bueiro, e durante algum tempo participei de uma comunidade no Flickr dedicada a fotografá-las. Há tampas muito variadas pelo mundo, e tenho fotos de uma mais linda do que a outra, em geral com os pés dentro do quadro, minha forma favorita de registrar por onde andei.

As tampas de bueiro brasileiras, infelizmente, são um fracasso estético na comparação com seus pares internacionais. Não passam de pragmáticas placas de metal, sem qualquer intenção de fazer bonito, perfeito exemplo do desleixo urbano que nos caracteriza. Uma tampa de bueiro bem decorada diz muito do capricho dos administradores da cidade.

Por outro lado, não conheço cidade tão cheia de bueiros quanto o Rio. No outro dia, andando por Ipanema e tendo de contornar uma obra que se fazia em torno de um deles, me dei conta de que a calçada era praticamente toda constituída de bueiros.

Decidi contá-los. Voltei para a esquina e comecei do começo. Vocês já tentaram contar bueiro? É muito difícil. O vai e vem das pessoas atrapalha, amigos e conhecidos interrompem as contas e levam-se esbarrões de gente que não olha por onde anda, até porque o contador de bueiros anda sem olhar. Apesar disso, quando cheguei à outra esquina, tinha contado 161, e esbarrado em pistas da história das telecomunicações, com tampas da CTB, da Telerj e de um genérico Telefone convivendo lado a lado. Também encontrei a preciosidade da foto, versão estapafúrdia da Light: depois a gente se espanta quando explodem.

O número não me saiu da cabeça. 161?! Como era possível a existência de 161 bueiros num único trecho de calçada?! Eu devia estar errada, mas ainda que tivesse errado por cem, sobrariam 61 bueiros num único lado de um único quarteirão, muito mais do que se vê em qualquer outra parte. Resolvi voltar no dia seguinte para uma recontagem... e cheguei a 164! Joguei a toalha. O fato é que, por uma ou por outra conta, está sobrando muito bueiro em Ipanema.

* * *

Houve um tempo em que o gosto musical da Bia ficou tão diferente do meu que quase não havia o que pudéssemos escutar juntas; uma das raras exceções era “Hair”, o musical que fez a cabeça da minha geração e que continuou vitorioso nas paradas até a adolescência da minha filha.

Perdi a conta do número de vezes em que vimos e revimos o filme de Milos Forman, e a quantidade de vezes em que os dois CDs, o da produção teatral e o da versão para o cinema, foram trilha sonora para nossas viagens de carro.

“Hair” resumia tudo em que eu acreditava com quatorze anos, época em que geralmente se acredita em tudo ou em nada com a mesma intensidade. Eu acreditava em paz e amor, e achava, de verdade, que bastava um pouco de boa vontade para que todos os seres humanos passassem a conviver em harmonia; tinha uma saudável descrença de ritos religiosos, mas achava muito bonitos os mantras indianos, adorava aquelas túnicas coloridas e tinha enorme prazer em sentir cheiro de incenso pela casa. No mais, até pelo histórico da família, tinha horror a guerra, qualquer guerra.

Quando a Bia e as suas amigas descobriram “Hair”, o mundo já era outro. A identificação da sua geração com o “meu” musical passava por outros circuitos, talvez pela nostalgia de uma postura de rebeldia que, no fim dos anos 80, já não fazia sentido. Independentemente da motivação, porém, a história nos fisgou por igual, e até hoje sabemos as músicas de cor.

Agora, passados tantos anos, fomos juntas à estréia de “Hair” no Casagrande – e saímos de lá com o mesmo encantamento antigo. A produção está linda, e tem um elenco jovem, afinado e cheio de garra: mesmo os atores que ficam no fundo do palco, encobertos pela sombra, dançam e cantam cheios de entusiasmo. Os figurinos e o visual da tribo estão ótimos.

O mais importante de tudo, porém, é que Claudio Botelho conseguiu o prodígio de traduzir as músicas sem torturar as palavras: elas caem naturalmente onde devem cair, e não causam estranheza ao ouvido acostumado à versão original. Uma coisa é traduzir um musical do qual ninguém se recorda, ou do qual ninguém conhece as letras; outra é mexer com o ícone de tantas gerações, com músicas que todos cantaram milhares de vezes. Sem essa tradução de alto nível, não poderia existir “Hair” em português.

* * *


Nada como o tempo para aproximar as gerações. Nos idos de “Hair”, a geração dos meus pais, e dos pais dos personagens, me parecia irremediavelmente perdida – uma geração que não sabia nada da vida, que tinha mania de trabalho e obsessão com contas e contracheques. Hoje, que já sou mais velha do que era aquela geração naqueles tempos, me pergunto como imaginávamos sobreviver. Era fácil ser hippie com mesada, e relativamente simples viver à margem da sociedade com casa e comida na retaguarda.

Os pais de Claude, que eram ridículos quando foram escritos, hoje, apesar de caricatos, me despertam certa simpatia. A mãe aspira a casa porque, afinal, alguém precisa cuidar da limpeza; e o pai cobra um trabalho do filho porque, até prova em contrário, seres humanos precisam trabalhar para garantir seu sustento.

O fato de exigirem que o filho se aliste são outros quinhentos; essa é uma parte do “sistema” que nunca vou conseguir entender. Não acredito mais que a convivência entre os bípedes deste planeta seja exatamente uma coisa simples, mas continuo firmemente convencida de que não é brigando que a gente se entende.


(O Globo, Segundo Caderno, 11.11.2010) 
   

9.11.10

O papo da Bienal

Fui a Campos falar sobre os jornais e o desafio da internet.

A Alcineia Gama estava lá e fez matéria para o portal da cidade.

A notícia está AQUI.

6.11.10

Nunca houve tempo igual

Escrevi este pequeno ensaio sobre os últimos cinquenta anos para o livro "50 anos construindo o futuro", publicado por ocasião dos 50 anos da CBS-Previdência:


As geladeiras eram importadas e os ventiladores um perigo para as crianças, com suas pás de metal desprotegidas. Comia-se manteiga sem culpa no café da manhã, almoçava-se em casa, jantava-se lautamente. Fotógrafos ganhavam a vida fazendo 3 x 4 na praça ou surpreendendo casais e famílias que passeavam na rua: os instantâneos ficavam prontos rapidinho, em menos de uma semana. As contas eram pagas em dinheiro vivo. O correio trazia cartas e telegramas. As cartas aéreas eram escritas em papel fino, para não ficarem pesadas e, por conseguinte, caras. Os comunicados fúnebres chegavam em envelopes com tarjas pretas, que lhes davam gravidade e os destacavam do resto da  correspondência. A televisão era um aparelho de luxo, que apresentava programação local por algumas horas – e, mesmo assim, em pouquíssimos estados. Para o grande público, as notícias vinham pelo rádio e pelos jornais, que traziam informações de todo o tipo, das grandes manchetes ao resultado dos concursos públicos. O noticiário em imagens garantia a circulação das revistas semanais e a popularidade dos cine jornais, projetados nas sessões de cinema antes dos longa-metragens. Mães zelosas guardavam revistas para os trabalhos escolares dos filhos e, em toda casa com um mínimo de recursos,  coleções de livros de referência para jovens tinham destaque nas estantes. Havia ótimo mercado para as enciclopédias, vendidas de porta em porta, em suaves prestações mensais. A palavra “tecnologia”, apesar de inventada em 1829, não fazia parte do vocabulário geral.

(Continua AQUI)

4.11.10

Recadastramento, o drama




















Era uma vez uma velhinha que, como a maioria dos velhinhos, vivia da aposentadoria. Um dia, consultando um caixa eletrônico, viu que a sua conta estava zerada e que a pensão não havia sido depositada. Ficou muito preocupada, com medo de que o cartão bancário houvesse sido clonado, e lá se foi para o banco, conferir o que tinha acontecido. A moça do caixa checou daqui e dali e, afinal, descobriu que o dinheiro não fora depositado porque a velhinha não havia se recadastrado. Para voltar a receber a pensão, explicou a moça, devia ir a certa repartição pública. A velhinha prontamente se dirigiu para lá; mas lá não era lá. Depois de muita busca e demora, apareceu afinal alguém que sabia das coisas, e mandou-a para outro endereço. Era lá.

-- Como é que vocês fazem um recadastramento sem avisar a ninguém? – protestou a velhinha.

-- Mas nós avisamos – respondeu o funcionário. – Divulgamos em todas as rádios da região, e no jornal “A Voz da Serra”.

A velhinha, que não gosta de ouvir rádio nem lê “A Voz da Serra”, argumentou que tinha endereço certo e sabido, e que em relação a assuntos tão importantes o mínimo que o estado podia fazer era enviar correspondência. O funcionário concordou, mas tranquilizou-a, dizendo que, dentro de uma semana, ela receberia um cartão magnético que resolveria todos os seus problemas futuros. A pensão voltou a ser depositada; o cartão, porém, nunca chegou. Em compensação, algum tempo depois, chegou uma carta da Seplag, Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, Rioprevidência, convocando-a para novo recadastramento – a ser realizado no dia anterior à chegada da carta, às 14h20.

A velhinha correu aflitíssima para o endereço indicado na carta. O local – uma escola estadual – estava vazio.

-- Eles não estão mais aqui – informaram. – O jeito é a senhora ir à Seplag.

A velhinha foi para a Seplag, onde foi recebida por uma funcionária atenciosa que, infelizmente, não pode fazer nada.

-- O problema é que agora são eles que fazem o recadastramento -- disse a moça.

-- Mas quem são “eles”? – perguntou a velhinha.

-- É que não é mais conosco, foi tudo terceirizado.

-- Não entendo porque a secretaria insiste tanto nesse recadastramento! -- desabafou a velhinha. – Na Europa, quando alguém morre, o cartório manda cópia da certidão de óbito para todas as fontes de aposentadoria, automaticamente.

-- Aqui também.

-- E aí? Não basta isso para que uma secretaria de planejamento e gestão possa separar vivos de mortos? Tem que assustar e atrapalhar os aposentados o tempo todo?

-- Ah, mas a senhora sabe como são essas coisas, né? – disse a funcionária.

Sim, a velhinha sabia. Um recadastramento terceirizado era coisa que devia dar muito dinheiro a várias pessoas. De qualquer forma, restava o problema: o que fazer? A moça orientou a velhinha a telefonar para um número da Seplag, o que a velhinha fez assim que chegou em casa. Neste número disseram a ela para ligar para outro número; e neste outro número, enfim, disseram-lhe para entrar no site, porque hoje em dia tudo é muito moderno e se resolve pela internet.

A velhinha ficou desesperada. Em seus 86 anos de vida, nunca precisou de computador, nunca pensou em ter computador e nunca teve a menor idéia de como entrar num site. Pegou um ônibus e desceu a serra, para pedir ajuda à filha. Mesmo assim, a tarefa não foi simples, porque o site é mal feito e complicado de navegar.
Depois de muitos cliques que não levaram a lugar nenhum, a filha conseguiu chegar à página que interessava. Entrou os dados pedidos e recebeu de volta um email:

“Acusamos o recebimento de sua justificativa de ausência. Fique atento à sua nova convocacão, que será divulgada através do site www.idfuncional.rj.gov.br, ou pelo número 0800 282 2326 no caso de segurados do Rioprevidência. Nos casos de segurados com impossibilidade de locomocão, o Rioprevidência fará o agendamento de sua identificacão biométrica no momento oportuno. Esta é uma resposta automática e não deve ser respondida.”

E este foi o ponto final das comunicações entre a velhinha e a sua fonte pagadora. Nem ela nem a sua filha entendem por que, tendo o endereço de email, a Seplag não avisa a data do agendamento aos interessados. O resultado é que, agora, estão ambas aflitas, uma discando o 0800 e a outra acessando o site, para não perder a data e a aposentadoria. Com o correio, já sabem que não podem contar, porque as cartas só chegam depois da data marcada. As duas me perguntaram se é isso que o estado considera boa gestão, e quantos aposentados não estarão na mesma angustiante situação.

-- Você já viu alguma empresa particular precisar recadastrar funcionário para saber quem existe e quem não existe? – me perguntou a velhinha. – Será que a Ambev ou a IBM recadastram seus funcionários o tempo todo? Você alguma vez já foi recadastrada?

-- Não, pensando bem, nunca fui. Sabe o que? Eu acho que isso dá uma crônica.

* * *

Enquanto isso, dois amigos tiveram os títulos de eleitor cancelados e não puderam votar nessas eleições, porque estão registrados em Mangaratiba, onde têm sítio. Descobriram isso no primeiro turno, quando chegaram à zona eleitoral e deram com os burros n’água. É que em Mangaratiba e em outros sete municípios fluminenses os eleitores precisaram se recadastrar.

-- Mas como é que vocês não avisaram isso às pessoas?! – perguntaram, indignados.

-- Avisamos sim: o carro de som rodou a cidade inteira.


(O Globo, Segundo Caderno, 4.11.2010) 

2.11.10

Grandes esperanças




 A imagem dos traficantes fugindo, apavorados, pela estrada de terra, é a imagem mais forte da guerra: lá iam os canalhas que não hesitam em assaltar, fazer arrastões, ferir e matar gratuitamente. Vermes, todos eles, covardes quando despidos das armas e dos números que fazem a sua força. Bandidos pé-de-chinelo, no sentido mais literal da expressão. E, no entanto...

* * *

 Meus netos gêmeos passaram aqui no domingo. Estão com um ano e três meses, andam para todos os lados e fazem as gracinhas típicas da idade. São lindos e engraçados, inocentes das maldades do mundo. Querem carinho e atenção, como todas as crianças, e processam o que vêem à velocidade da luz. São pequenas páginas em branco em que a vida vai, gradativamente, escrevendo as suas histórias.

Os dois têm a sorte extraordinária de terem nascido no seio de uma família bem estruturada, que pode lhes dar amor, comida adequada e educação. Nada fizeram para isso, exceto acertar na grande loteria da existência.

Poderiam igualmente ter nascido no Complexo do Alemão, numa família sem amor e sem recursos ou, eventualmente, em família nenhuma. Poderiam ser filhos dos miseráveis que fugiam desesperados de um morro a outro. Poderiam, em alguns anos, ser aqueles miseráveis. 

* * *

 Não tenho pena de assaltantes e de assassinos, mas não consigo deixar de ter pena das crianças que um dia eles foram. Ninguém pede para nascer numa comunidade abandonada, de onde o poder público se retirou há décadas. Vejo o olhar confiante dos meus netos e imagino o mesmo olhar em crianças cuja confiança será traída a cada passo, cuja esperança será destruída antes mesmo que saiam da primeira infância.

Caso sobrevivam, que opções encontrarão pela frente? Quem lhes ensinará um ofício, quem lhes explicará que o crime não é um meio de vida correto e aceito, quando, à sua volta, todos se curvam ao poder dos criminosos? 

* * *

 Não acho que “a culpa é da sociedade”. A “sociedade” trabalha como um camelo e paga cada vez mais impostos, exatamente para que os gerentes que elege para cuidar do coletivo possam construir e manter escolas e hospitais, organizar e vigiar a polícia, prestar atenção à urbanização e assim por diante. A culpa tem nome, endereço e CPF: todo governante, todo político que desviou dinheiro, que fez acordo com o crime, que preferiu as pompas do poder ao trabalho que foi contratado para fazer.

Também não acho que a culpa pela violência seja dos usuários de drogas, teoria tão em moda nos últimos tempos. Parte da humanidade precisa de entorpecentes desde que o mundo é mundo, e há viciados em todos os cantos do planeta sem que, na esteira do vício, se crie essa violência toda. Já escrevi isso aqui uma vez: sou absolutamente careta, não consumo droga de espécie alguma, sequer batata frita do Mac Donalds, mas sou a favor da liberação de (quase) tudo – sem embalagem atraente e, sobretudo, sem propaganda e sem endosso de celebridades. O álcool é tão ou mais prejudicial à saúde do que a maconha ou a cocaína e, no entanto, é vendido livremente – como deve ser. O que está errado é o estímulo constante ao seu consumo. Mas essa é uma longa história, e uma outra crônica. 

* * *

 Como todo mundo que mora no Rio, fiquei primeiro angustiada, e logo aliviada com o desenrolar da guerra. Senti emoção ao ver a bandeira brasileira tremulando no alto de um morro de onde nunca deveria ter metaforicamente saído, e orgulho pelos policiais e pelos militares que conseguiram o que se dizia impossível: a retomada do Alemão sem um banho de sangue. Foi um belo momento, que vai viver na memória de todos nós que, ao longo dos anos, acompanhamos a escalada da violência.

Depois li que o prefeito quer instituir o dia 28 de novembro de 2010 como data de refundação da cidade. Com todo o respeito, menos, senhor prefeito, menos. Não diminuindo a importância do que foi feito, penso que ainda há muito a ser realizado até que o carioca possa, de fato, dizer que a sua cidade nasceu de novo. Aí está a Rocinha que não me deixa mentir; mas aí está o próprio Alemão e, sobretudo, aí estão as centenas, se não milhares, de crianças e jovens do tráfico.

Retomar o território dos traficantes é só o primeiro passo – enorme, com certeza, mas, ainda assim, só o começo do que deve ser uma longa caminhada. Os serviços públicos precisam ser regularizados, a população precisa ser atendida nos seus anseios de cidadania. Mas, acima de tudo, as crianças e os jovens têm que receber atenção prioritária das autoridades. Não basta construir escolas; é preciso pô-las para funcionar, e bem, e garantir que nenhuma criança deixe de ir às aulas. A única saída para a barbárie é a educação. 

* * *

 No grande saldo positivo da guerra, há uma história feliz acontecendo no Twitter: o usuário @vozdacomunidade , que tinha cento e poucos usuários no começo da semana passada, passa de trinta mil no momento em que escrevo. Este é o endereço do jornal Voz da Comunidade, que completou cinco anos de bons serviços prestados. Seu fundador, Rene Silva Santos, está hoje com 17 anos. 

Ao longo de todo o cerco, ele foi uma linha direta entre o Complexo do Alemão, onde nasceu e cresceu, e a turma conectada. Fez sucesso: deu entrevistas à televisão, aos jornais e revistas, conversou com repórteres estrangeiros. E, com isso, trouxe o Alemão um pouco mais para perto de todos nós. Valeu, Rene!

* * *

Eu amo o Rio.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.12.2010) 

1.11.10

Pantanal


















Lindo álbum do Pantanal -- trabalho do fotógrafo Pepe Mélega.

Cliquem AQUI.

Não deixem de ver isso!





















Um amigo de Facebook me recomendou essa projeção em 3D.

Não tenho nenhuma informação: não sei onde foi, quando foi ou quem fez, mas sei que foi o máximo!

Para assistir, cliquem AQUI.

A internet em manchete

















Na quarta-feira acordei tarde, passei a manhã resolvendo coisas e só me conectei lá pelo meio da tarde. Chequei os comentários do blog e as mailboxes, e fui para o Twitter. Dei uma olhada na Timeline. O polvo Paul continuava liderando. Os demais assuntos não me chamaram a atenção. Em terceiro ou quarto lugar, se bem me lembro, estava Kirchner.

“O que será que ela fez agora?” pensei com o meu teclado, e fui conferir. Assim é que descobri a morte de Nestor Kirchner – e, de quebra, cristalizei a descoberta, da qual vinha gradativamente me dando conta, de que, ultimamente, o Twitter é mesmo a minha fonte primária de informação, o lugar onde pesco a notícia em estado bruto.

Essa informação, aliás, é interativa e, volta e meia, tem duas mãos – já me aconteceu várias vezes cair num engarrafamento inesperado, ou ter dúvidas sobre alguma coisa, dar uma tuitada a respeito e, na sequência, receber dezenas de respostas.

Mas essa “descoberta” óbvia não foi a única do caso. No dia seguinte, quando acordei e peguei o jornal, a proverbial lâmpada dos desenhos animados acendeu-se metaforicamente acima da minha cabeça: lá estava o efeito internet estampado na primeira página, numa manchete que, há poucos anos teria sido radicalmente diferente:

“E agora, Argentina?” perguntava “O Globo”.

Aquela era uma manchete feita com o pleno conhecimento de que, àquela altura, todos os leitores já sabiam da morte do ex-presidente. Uma manchete antenada com os caminhos atuais da informação. Para benefício de algum leitor que tivesse passado o dia anterior em retiro espiritual ou em viagem interplanetária, duas linhas menores esclareciam: “Morte súbita do ex-presidente Kirchner confunde cenário político do país”.

No todo, nada demais. Nada que já não tivesse acontecido antes no próprio jornal, onde as manchetes esportivas, sobretudo, já partem, há tempos, do princípio que o resultado do jogo não é mais novidade. Mas este foi o momento em que a minha ficha caiu completamente: ali estava a prova da influência da universalização da internet sobre a primeira página.

Há cinco ou seis anos, a manchete teria sido “Morre Kirchner”, ou “Enfarte mata Kirchner”, ou outra variação qualquer no mesmo tom; em alguns outros jornais, aliás, as manchetes foram exatamente essas, e subitamente elas me pareceram muito, muito antigas.

O mais curioso é que, há cinco ou seis anos, o rádio e a TV já existiam há décadas, e já transmitiam informação exatamente como fazem hoje, instantaneamente; mas os jornais pareciam não levar isso em conta. Era como se o público que se informava por rádio ou TV fosse um público diferente, ou como se, aos jornais, fosse obrigatória a reiteração da informação primária.

Aquela manchete de quinta-feira, “E agora, Argentina?”, me deu o que pensar. Ali estava, indiretamente, apontado o caminho que, mais e mais, os jornais impressos devem seguir no momento em que todas as outras formas de informação são mais ágeis: repercussão, análise, opinião. Bem ou mal, aquela era a pergunta que estava – e que ainda está -- na cabeça de todos. E agora, Argentina?

E agora, jornal?

Eu acho que é por aí mesmo.


(O Globo, Revista Digital, 1.11.2010)