Cadernos de viagem
Domingo, 4 de maio, 16hs -- a bordo do vôo 1256 das Aerolíneas Argentinas. Como tudo o que é bom sempre acaba, cá estamos nós, no avião, voltando para casa. Onde, aliás, não é bom, é ótimo; mas isso são outros 500. Enquanto a Bia descasca a tangerina que providencialmente nos lembramos de trazer, penso na vida e nas feriazinhas gostosas que acabamos de viver.Uma das coisas que mais nos impressionou em Buenos Aires, desta vez, foi a quantidade de cães e a relação das pessoas com eles. A cidade é muito civilizada sob este aspecto, exatamente como Paris, com a diferença que, em Buenos Aires há uma predominância notável de pastores alemães. Eles acompanham os donos por toda a parte; alguns até dão expediente nas lojas, onde são super paparicados pela clientela (nós inclusive, que não resistimos a animais). De modo geral, esses cães são muito gentis e simpáticos -- e, antes que vocês sintam vontade de acrescentar "ao contrário dos donos", devo dizer que os argentinos que encontramos foram, quase todos, gentis e simpáticos também.
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Ainda há traços, porém, daquela crise econômica terrível que, ontem mesmo, a gente viu nos jornais. Há gente pedindo dinheiro em toda parte e -- desconcertante para nós, que nos habituamos a mendigos maltrapilhos e em geral de cor -- gente loura e relativamente bem vestida.
Uma tarde, enquanto olhávamos umas jaquetas de couro, um senhor entrou na loja. Devia ter seus setenta anos, cabelos brancos bem aparados, terno, colete e gravata, todo arrumadinho. Não se dirigiu a nós, mas ao dono da loja, a quem, depois de pedir mil desculpas, pediu também algum dinheiro, pouquinho que fosse, pelo menos para inteirrar a condução. O dono da loja não lhe deu nada e, antes que pudessemos fazer qualquer coisa, mandou-o embora.
Ficamos impressionadas com a cena que, em alguns segundos, nos revelou tanto da Argentina de hoje. As aparências estão de pé, mas o que há por trás delas? Aquele senhor estava obviamente arrasado com a sua situação, constrangidíssimo em mendigar. Tinha educação, boas roupas e poderia, facilmente, passar por cliente -- mais até do que nós duas que, como cariocas no frio, estávamos meio deslocadas.
Ele me lembrou muito os velhinhos que vi em Moscou, há uns três anos, vendendo o pouco que (ainda) tinham em casa na Rua Arbat.
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O tal senhor, que toca a loja com a esposa, foi muito atencioso. Nos mostrou várias jaquetas diferentes, teceu considerações sobre as cores e discorreu a respeito da qualidade do couro; mas, para mim, havia algo errado além dos inúmeros casacos de pele enfileirados numa arara. Quando saímos, a Bia disse:
-- Nossa, como eu estava me sentindo mal! Esses dois devem ter sido nazistas! Hoje ele me abraça, mas no passado deve ter exterminado muitos parentes meus.
Pois foi exatamente o que senti! Podemos ter tido uma alucinação simultânea, podemos ter nos influenciado mentalmente uma à outra e cometido um erro fenomenal de leitura... mas, sinceramente, as vibrações estavam negras. Brrrrrrrr.
Por enquanto, apesar da delícia que era a cama do Alvear, anseio pela minha própria caminha, onde pretendo dormir o sono dos justos cercada pelos meus quadrupes queridos.
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