8.5.03





The Buenos Aires affair

A crise econômica argentina vista de um dos melhores hotéis do mundo


Quando o avião aterrissou em Buenos Aires, o senhor à nossa frente virou-se e perguntou se falávamos espanhol. Fizemos que sim, e ele disse que a nossa conversa soara como música aos seus ouvidos. Não é bem o que a gente espera ouvir de um argentino, mas esta foi apenas a primeira das surpresas da viagem. Agradecemos, encabuladas. Expliquei que só podia ser porque tínhamos muita prática. Rimos os três hermanos , e seguimos em frente, cada qual para o seu destino.

O nosso era o Hotel Alvear, na Recoleta, antigo sonho de consumo que, graças a um dólar fraco, uma crise forte e um feriadão bem posicionado, pudemos curtir durante quatro dias. No ano passado, o Alvear foi considerado, pela revista “Travel & Leisure”, o segundo melhor hotel da América Latina, e um dos 20 melhores do mundo. Mesmo sem conhecer 17, já acho o título bem merecido.

Construído em 1932 (no século passado!), quando Buenos Aires era a cidade mais chique e importante do continente, o hotel é um escândalo de bonito, com seus mármores polidos, sua escadaria de cartão-postal, seus pés-direitos altíssimos. Nosso quarto era relativamente pequeno e, por ser no segundo andar, muito barulhento; a cadeira da escrivaninha rangia e era péssima para trabalhar, mas a qualidade da cama, do chuveiro e do serviço, ah, nem vos digo! Além disso, frutas frescas e bem escolhidas todas as noites, flores, frescurinhas Hermés, conexão Internet e um PC só para nós. Sem falar que, no banheiro, o espelho não embaça.



O que mais gostei, porém, foi o que eles chamam, em bom espanhol, de butler service . O butler — ou mordomo, em bom português — resolve todo e qualquer problema que o distinto hóspede tenha. Até, imaginem, empacotar e desempacotar as malas!

Funciona assim: quando a gente chega, aperta um dos botões do telefone, pede ao butler que cuide das malas e vai passear. Ao chegar da rua, encontra as roupas miraculosamente arrumadas.

Se na chegada é bom, na despedida é ainda melhor. Aperta-se novamente o número mágico, convoca-se o butler e deixa-se tudo em suas mãos. Só em casa é que a gente descobre o fino da butleria : sapatos e roupas embrulhados em papel de seda, um a um.

Já decidi. Quando voltar à Argentina, vou pedir minha butler em casamento.



A quantidade de cães que circulam por Buenos Aires é impressionante. Sob esse aspecto, a cidade é tão civilizada quanto Paris. Os cães podem acompanhar os donos por toda a parte e alguns até dão expediente nas lojas, onde são superpaparicados pela clientela. De modo geral, são fofos e simpáticos — e, antes que vocês sintam vontade de acrescentar “ao contrário dos donos”, devo dizer que, a partir daquele do avião, quase todos os argentinos que encontramos foram gentis e simpáticos também.



A vôo de pássaro, Buenos Aires parece de bem com a vida. Cafés, restaurantes e livrarias estão cheios e a náiti , como de hábito, vai até o alvorecer. Em nenhum lugar se sente a insegurança que, hoje, no Rio e em São Paulo, nos soa o toque de recolher psicológico a qualquer desoras. A cidade está limpa, iluminada e bem cuidada.

No entanto, as marcas da crise econômica lá estão, nítidas. Os serviços desesperadamente baratos e, por toda a parte, pessoas pedindo dinheiro. O mais desconcertante para nós, habituados a mendigos maltrapilhos e em geral de cor, é que os pedintes portenhos são quase todos louros, e vestem-se melhor do que a maioria dos trabalhadores brasileiros.



No segundo dia da viagem um senhor entrou na loja onde olhávamos jaquetas de couro. Tinha uns 70 anos, cabelos brancos bem aparados, terno, colete e gravata, tudo muito limpo e arrumado. Não se dirigiu a nós, mas ao lojista, a quem, depois de pedir mil desculpas, pediu também algum dinheiro, pouquinho que fosse, ao menos para inteirar a condução. O homem não lhe deu nada e, antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, mandou-o embora.

Ficamos chocadas com a cena que, em alguns segundos, nos revelou tanto da Argentina de hoje. As aparências estão de pé, mas sabemos que é só. Aquele senhor estava obviamente arrasado com a sua situação, constrangidíssimo em mendigar. Tinha educação, boas roupas e poderia passar por freguês da loja — mais até do que nosotras , que, como boas cariocas no frio, estávamos ligeiramente deslocadas.



P.S. — Oscar Musladino, de quem comprei um filete muito bonito, me contou uma historinha exemplar e muito atual — pra não dizer que não falei, Cacá! — a respeito do mal que os burocratas podem causar à cultura. Durante a ditadura, um burocrata decidiu que o filete (aquela espécie de tango tipográfico que enfeitava tantos caminhões e ônibus na Argentina) podia desviar as atenções dos motoristas, e baixou uma portaria proibindo o seu uso. O trânsito continuou igual, claro. Mas, sem trabalho, os fileteadores mudaram de profissão. Muitos, possivelmente, foram para o desemprego — e a linda arte do fileteador nunca mais foi a mesma.

(O Globo, Segundo Caderno, 8.5.2003)

Update: O título dessa crônica foi uma homenagem a meu amigo Manuel Puig, o autor de "O Beijo da Mulher Aranha". Nascido na Argentina, Puig morou no Rio entre 1981 e 1989, na Rua Aperana, e morreu no México em 1990. "The Buenos Aires Affair" é o título de um dos seus livros -- o meu favorito, junto com "Boquitas Pintadas".

Usar este título me deu saudades dele e, ontem à noite, carreguei os livros pro quarto, para ler um pouco. Por acaso, o primeiro da pilha era "Sangue de Amor Correspondido", em que ele escreveu: "Para Cora, que hoy me dijo que estaba muy feliz, abrazos de Manuel". Não me lembro mais por que eu estava muito feliz, embora imagine; mas o que me espantou foi a data, 7 de maio de 1982. Abri o Palm para conferir: 7 de maio de 2003.

Assim se passaram 21 anos; ele nunca teria acreditado.

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