10.9.01

Privacidade pública



Um dos maiores problemas de se estar na praça há tanto tempo quanto eu estou é a tendência insopitável de se usar palavras como insopitável, e se começar colunas com a fatídica palavra “Antigamente...”. Embora não nos faltem dicionários neste momento, nada é insopitável; e quem quer ler sobre os antigamentes da vida vai direto aos livros de história. Num caderno de informática, o que importa é, sobretudo, o futuro — embora eu, sinceramente, esteja achando esta palavra, futuro , muito mais desgastada e oca do que o bom e velho antigamente.

Isso tudo por quê? Porque, quanto mais eu ouço falar em privacidade, mais me lembro dos militares. Antigamente , cada vez que um general vinha a público afirmar: “As Forças Armadas estão coesas”, a gente já sabia — estava quebrando um tremendo pau lá entre eles. Pois quanto mais se fala em privacidade, hoje, menos privacidade se tem. Na boca da Micro$oft, então, esta palavra é um perigo. A gente sabe bem o tipo de privacidade que eles têm em mente.

Mas é injusto dar exclusivo destaque à M$ neste nosso orwelliano mundo de câmeras, vigilância de sites e de mailboxes, gators e cookies. Eu já joguei a toalha da minha privacidade há tempos. Estou conformada com o fato de que não há nada que alguém queira saber a meu respeito que não possa saber, desde que consulte as fontes certas, clique nos sites pertinentes e — vá lá — pague as devidas propinas a um despachante safo.

Não sendo nem do Pará nem de Ribeirão Preto, não tenho a pretensão de achar que há forças ocultas de fato interessadas na minha rotineira pessoa — mas também não sou ingênua a ponto de não saber que existem gigantescas forças comerciais interessadíssimas nos meus hábitos de consumo, dispostas a me virar de cabeça para baixo e sacudir bastante, para pegar as últimas moedinhas que me caírem dos bolsos. A questão toda é que, para elas, eu não sou Cora Rónai; sou apenas um número dentro de um quadro genérico, e o meu lado número, digamos assim, já não está nem aí. Esta luta está perdida há tempos.

Isso, porém, quer dizer apenas que, filosoficamente, já me entendi com o problema; mas não quer dizer que, ainda que considere a batalha perdida, não esteja disposta a lutar, com unhas e dentes, contra qualquer tentativa de invasão de privacidade.

É assim: eles forçam de lá, a gente se defende de cá. Adianta? Possivelmente não, mas ainda que eu consiga, enquanto número , me desligar o suficiente da questão, não é do meu feitio, a nível de pessoa , sofrer em silêncio.

O problema é que a sociedade, como um todo, acordou tarde demais para a questão — se é que acordou. Em nome de um suposto “serviço” ou de uma suposta “segurança”, tudo é considerado... normal. Os cookies, que nos seguem pela internet afora, são, afinal, tão práticos e inocentes, não são? E o que tem demais a identificação individual dos chips da Intel? Câmeras de vigilância nas portas dos condomínios? Perfeito. Nos corredores dos hotéis? Claro. Nos elevadores? Lógico. Nas ruas? Por que não?

E ainda não ouvimos da missa a metade. Tenho visto em laboratórios de alta tecnologia modelos extremamente eficientes de “casas inteligentes”, “carros inteligentes”, “objetos inteligentes”. De um lado fico fascinada com o desenvolvimento da tecnologia; de outro, chocada com o ponto a que chegamos.

Num desses laboratórios, se fazia a demonstração de um sistema GPS (Global Positioning System) casado a celulares e cartões... hm, “inteligentes”, claro, como todo o resto. Com um celular ou um cartão desses, é possível ao mundo supostamente inerte à volta interagir com o cidadão. A parada do ônibus lhe mostrará num mapa onde está a sua condução, a loja da esquina o avisará de que chegou a roupa que ele queria, o videoclube pedirá de volta a fita cujo aluguel vence logo mais. Tudo muito eficiente e muito prático, mas... Pois é, aí deixo vocês, com essa conjunção adversativa.

O Globo, 10.09.2001

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