17.9.01

Jornalistas até o último bit



Sobre o que se escreve numa semana como essa? Há — para júbilo dos Jáders e dos Condits — algum outro assunto? Alguém ainda agüenta falar sobre isso? Alguém consegue deixar de falar sobre isso? Estamos todos nos repetindo, tautologicamente, como as imagens da TV, em que as duas torres do WTC não páram de ser atacadas por dois aviões, uma de cada vez, explodir em chamas e ir ao chão. Já vimos essa imagem centenas, milhares de vezes, vamos ver outras centenas, outros milhares e, embora exaustos, vamos mais uma vez parar em frente à televisão, hipnotizados, incapazes de acreditar no que estamos vendo — mas incapazes, também, de acreditar que estamos duvidando do que tão claramente se desenrola diante dos nossos olhos.

Dizem que uma imagem vale por mil palavras, e não há como discutir o impacto das horrendas imagens a que assistimos ao longo dos últimos dias. Mas por quê, então, esta ânsia de falar, de escrever, de buscar uma tradução em palavras para o que, afinal, já vimos tanto? Eu não sei responder. Imagino que haja um quê de catarse nisso, que o fato de escrevermos e falarmos uns para os outros nos ajuda a ordenar as idéias, na esperança de descobrir algum sentido que talvez nos tenha escapado.

No meu caso particular, como jornalista, sei que nada na minha vida acontece completamente enquanto não é narrado, contado, compartilhado. O repórter é essencialmente um ser que reporta, um contador de histórias. Ele precisa contar o que viu, e quando viu; precisa dizer onde estava, o que fazia, o que aconteceu. E quem fez o quê, e como e por quê, e é a falta de respostas a essas três últimas indagações, imagino, que nos está deixando a todos tão aflitos.

A tragédia americana demonstrou, claramente, que há mais jornalistas, mais bípedes narradores espalhados pelo mundo, do que poderíamos imaginar só de ler os jornais e revistas, ou assistindo à televisão. Eles não estão ligados a nenhuma empresa de comunicação e, na maioria das vezes, são jornalistas sem querer, ou mesmo sem saber — como Mme. de Sévigné, que descreveu com tal riqueza de detalhes a vida na França do Século XVII que é inquestionavelmente a grande repórter da sua época.

Se tivesse se afastado da filha e começado a lhe escrever aí por 1985, Mme. de Sévigné teria sido o que, então, a gente chamava de BBSzeira. Trabalhando com modems de 2.400Kbps, baixávamos os pacotes de mensagens e posts do dia, respondíamos a tudo, escrevíamos mais alguma coisa e subíamos o nosso pacote. Era complicado, mas a gente achava o máximo. Se Mme. de Sévigné estivesse começando a escrever hoje, porém, ela seria, é claro, uma blogueira. Do seu cantinho do mundo, estaria dando a sua versão dos acontecimentos, fazendo observações, tecendo as palavras com o mesmo cuidado com que outras pessoas fazem tapeçarias ou peças de crochê.

Assim fizeram incontáveis blogueiros de Nova York, narrando, em suas respectivas línguas, o que viam acontecer ao redor de si. A maioria das pessoas estava na frente da televisão, olhando uma tela de fora para dentro; mas eles, jornalistas incorrigíveis, preferem olhar a tela de dentro para fora.

O Globo, 17.09.01
(E agora, depois dessa coluna, chega, né? Quero mudar de assunto!!!)


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