5.9.02



Pretérito imperfeito

Fuçando os arquivos do jornal, para descobrir quando escrevi pela primeira vez sobre o Napster, encontrei isso. Foi publicado no dia primeiro de novembro de 1999:

"As gravadoras e a indústria da música em geral estão subindo parede de costas, mas é impossível subestimar o impacto do MP3. Não só pela facilidade de envio de músicas pela Internet, sem nenhuma perda sensível de qualidade (grande trauma das gravadoras) mas, sobretudo, pela praticidade da coisa: não há nada melhor do que ter as suas músicas todas ao alcance do mouse; eu já estou com um disco extra de 6.2Gb só por causa disso.

Ao contrário do que possam pensar os executivos da indústria, que associam automaticamente os termos "MP3" e "pirata", muito pouco disso, mas muito pouco mesmo, já não me pertencia anteriormente, em CD.

Enquanto as gravadoras chiam e vão, inutilmente, protestar junto às autoridades americanas, como acabam de fazer ("Tiooooo!!! Olha só o que eles estão fazendo!!!!" - que atitude ridícula) a turma manda ver. Inúmeros sites de música úteis e inofensivos já foram trucidados pelas companhias; o que mostra quão pouco a indústria de música entende de Internet e, sobretudo, de internautas.

Quando deixar um arquivo MP3 online passa a ser prejudicial à saúde, o que fazem os bons navegantes? Tiram tudo do ar, naturalmente. E se ligam no Napster www.napster.com>, que cria conexões diretas entre as bibliotecas dos usuários. Não temam: no dia em que inventarem um artifício legal para tirar o Napster do ar, aparecerão dez outros sistemas parecidos, quiçá até melhores.

As gravadoras só têm chance de sobreviver ao MP3 se, em vez de ficarem ameaçando a humanidade, aproveitarem (e já!) o extraordinário poder de penetração do MP3, reinventando-se como negócio e, principalmente, mentalidade.

Ah, sim, só para dar idéia das proporções da coisa: no mês passado, "MP3" superou "sex" como palavra mais requisitada nas ferramentas de busca da rede."

Mais tarde, no dia 31 de julho de 2000, escrevi isso:

Ao contrário do que a RIAA pensa (ou diz pensar), a questão do Napster tem menos a ver com pirataria do que com liberdade de escolha, ou seja, liberdade de expressão. Ninguém é ingênuo a ponto de supor que o Napster não é, eventualmente, utilizado para fins escusos - mas as copiadoras da Xerox e os aparelhos de videocassete também são. Tanto que já foram, em seu tempo, alvo de processos semelhantes. Sobreviveram, e nem por isso as editoras ou a indústria cinematográfica morreram.

Sistemas como o Napster oferecem aos usuários algo que jamais tiveram (tivemos!) antes: a possibilidade de acesso imediato a quase tudo o que já se fez ou se está fazendo em música, e não simplesmente ao que as gravadoras acham relevante. Foi preciso que o Napster aparecesse para que eu descobrisse, por exemplo, o repertório sensacional do Chad Mitchell Trio, um grupo dos anos 70 do qual eu só conhecia, até outro dia, uma mísera música. Foi graças ao Napster, também, que encontrei uma gravação melhor do que a outra de "Waltzing Mathilda", a canção nacional dos australianos, e de "Sarie Marais", que os sul-africanos cantam com um nó na garganta. As gravadoras, no entanto, acham que eu só preciso de pagode e de música sertaneja de péssima qualidade.

Toda a gritaria que a RIAA está fazendo em nome de supostos direitos autorais violentados é muito bonita, e tem até algum fundamento, mas não comove ninguém, e por uma razão muito simples: a sociedade como um todo lucra muito mais com a riquíssima diversidade cultural de um Napster do que com a manutenção de um status quo que beneficia, principalmente, os executivos milionários de uma indústria biliardária. Simples assim.

Ouçam Glenn Reynolds, líder da banda techno Mobius Dick e professor de Direito na Universidade do Tennessee:

"A propriedade intelectual não é um direito divino. Não está na Constituição. É só uma ferramenta de política social - não para tornar as pessoas ricas, mas sim para promover inovação nas ciências e nas artes. Quando o sistema se estrutura não de forma a avançar este propósito, mas tão-somente para garantir a preservação da riqueza, perde a sua legitimidade; e quando a própria legislação de direitos autorais passa a ser vista como ferramenta que permite a meia dúzia de ricaços oprimir as massas, poderá haver, sim, uma reação que eventualmente prejudique as gravadoras, ainda que elas dêem um jeito de lidar com o fenômeno Napster. Por mim, sinceramente, isso está ótimo."

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