15.12.03









Flagrei essa ceninha legal no almoço de fim-de-ano da Vivo. O camarada que está falando é Francisco Padinha, CEO da empresa: gente fina.

Ver e fotografar

Cara Cora,

o mundo não é o que se fotografa. A percepção subjetiva de duas capivaras não depende de fotografá-las ou não. A observação é que faz com que você trabalhe seu cerébro. A superutilização dos gadgets faz com que fiquemos como a maioria dos japoneses, que viajam o mundo todo e não vêem nada, só fotografam. Vão ao Louvre, em Paris, param 10 segundos em frente à Monalisa e tiram cinquenta fotos. Na verdade eles não viram a Monalisa. Eles não repararam em nada na Monalisa, apenas fotografaram. Eles viajam a Paris, tiram 500 fotos, mas não conhecem Paris. Eles só vão conhecer Paris, quando estiverem no Japão, e forem ver as fotos. Então, eles passaram a conhecer Paris, mas apenas através de fotos, como a maioria das pessoas.

Mas o mundo Cora, não cabe em rolos de filme ou em memory cards. Por isso, a superutilização de gadgets é maléfica. Fotografa-se tudo, estamos sempre plugados, mas não percebemos o que é real. Não sentimos os cheiros, não ouvimos os sons ao nosso redor, vemos de tudo, temos todas as imagens, mas não percebemos nada.

Abraços,

Paulo Celso Pereira


Salve, Paulo Celso.

Não posso te responder em nome dos japoneses, mas no meu, posso garantir que as coisas não são assim tão distintas: ver ou fotografar. Entendo que para quem tem pouca intimidade com a máquina fotográfica, a complicação de ajustá-la se sobrepõe ao gozo do momento; por isso, aliás, não faço foto submarina. Nunca cheguei a dominar bem o equipamento, e preferi continuar curtindo os peixes e corais sem estresse.

Mas aqui em cima d'água, a máquina é uma segunda natureza para mim. Ela não está agindo em lugar do meu olho ou dos meus sentidos; está apenas anotando o que eu vi. Fotografar bem uma capivara, como, de resto, qualquer coisa, envolve um mínimo de convívio com o animal. Pode ser que haja gente com "quilometragem" de capivara igual à minha, mas maior vai ser difícil. Sei os horários das bichinhas e de onde vêm quando aparecem, conheço as suas manhas, fui possivelmente a primeira pessoa a fotografar as duas. Conheço a sua voz e o seu cheiro (que não é dos melhores), sei até quando estão de bom ou mau humor.

Não subestime todos os fotógrafos (ou todos os usuários de gadgets eletrônicos) -- que tendem a ser pessoas muito curiosas e interessadas pelo mundo.

Um grande abraço,

Cora

Estava trabalhando na minha correspondência, acabei de escrever essa carta e fiquei pensando por que ainda existe
este preconceito em relação às máquinas, por que ainda existe essa noção de que ou se vêem as coisas ou se fotografa. Para mim, é tão óbvio que fotografar aguça a percepção do mundo!

Na quinta passada, escrevi meio de brincadeira a respeito da reação dos gregos à escrita em detrimento da memória. Agora me pergunto se a reação do Paulo Celso -- comum à maioria das pessoas que não fotografam -- não tem um pouco a ver com isso, ou não é uma versão revisitada da velha cisma.

Num exercício de retórica, poderia haver algo a ser dito em favor da memória sobre a escrita ainda hoje. Se soubéssemos apenas o que conseguimos decorar, se ficássemos restritos ao âmbito das nossas mentes, estaríamos, como estamos, afogados no tal information overload?

Sei lá.

Só tou pensando em voz alta.

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