11.12.03



As invenções bárbaras

Acontece: às vezes um filme acaba dominando completamente o panorama, como se fosse uma espécie de tema obrigatório da temporada. Já aconteceu com “Beleza americana” e com “Tiros em Columbine”, por exemplo, com “Cidade de Deus” e até com “Amélie Poulain”; agora, está acontecendo com “As invasões bárbaras” — que, apesar de estar em cartaz há mais de um mês, continua dando pano para as mangas. Gostei do filme, como todo mundo, mas, ao contrário da maioria (como é que eu sei?), não achei que está com essa bola toda. Para mim, o bonequinho estaria aplaudindo apenas sentado, vagamente perplexo com a comoção à sua volta.

Os atores são excepcionais, a direção é excelente, o roteiro é ótimo — mas a questão central do filme, ainda que bem conduzida, é muito antiga para quem discute o assunto desde o século passado (o Vinte), quando o manifesto do Unabomber causou tanta celeuma.

Rémy, o intelectual, reencontra Sébastien, o filho yuppie que, mergulhado em tecnologia e dinheiro, ama tudo o que o pai detesta e sabe, direitinho, como é que a banda toca. A relação entre os dois se refaz aos poucos, lindamente, em meio a um confronto contínuo entre idealismo vencido e pragmatismo vencedor. Os gadgets de Sébastien e a sua noção de que o mundo cabe inteiro na tela de um notebook ou de um celular são os vilões do filme — embora garantam a Rémy um fim de vida compatível com os seus ideais românticos. Money talks mais alto.

Para muita gente, meu querido Arnaldo Bloch inclusive, o ponto alto do filme, ou pelo menos um de seus momentos emblemáticos, acontece quando Nathalie, uma junkie do bem, atira o celular de Sébastien ao fogo. Para essa galera de late bixos grilos , é um instante de libertação: “Chega, nerds ! Vivam a vida! Olhem a natureza! Conversem com as plantas e com as pessoas que estão ao seu lado!”

Ora, simbolismo por simbolismo, para mim a cena representa uma metáfora da inquisição, queimando na fogueira da ignorância aquilo que não compreende. Assim, o Nokia em chamas passa a ser um pequeno Jan Hus de plástico e silício, ardendo em sacrifício pelo conhecimento e pelo progresso — com tudo o que a palavra carrega hoje de pejorativo. Só não exclama “ Sancta simplicitas !” porque o latim saiu de moda e porque, afinal, os telefones celulares são humildes e se abstêm de fazer juízo sobre as pessoas. Mas não é de todo impossível que o último pensamento a cruzar seu chip tenha sido “Holy shit!”, o similar inculto da língua franca do nosso tempo.

* * *

Digo tudo isso mas, na verdade, não estaria aqui falando do filme (que, a meu ver, já foi discutido à exaustão: próximo assunto, por favor) se o Arnaldo não tivesse tocado no tema e trazido à tona, na sua crônica de sábado passado, velha discussão recorrente entre nós. Ele acha que devemos restringir o consumo da tecnologia a um mínimo, ao passo que eu acho que devemos explorá-lo ao máximo.

Não há nem como, nem por quê, reverter o tempo e voltar a um mundo que já não existe. Nosso cordão umbilical está irremediavelmente ligado a saídas USB e fontes de energia.

Quando digo que não sou ninguém sem as minhas máquinas, isso não significa que a minha identidade está nelas, mas sim que elas expandem a minha mente e as minhas ações para muito além do que pode ir a frágil estrutura de carne e osso que usamos para carregar nossos cérebros de um lado para outro.

* * *

Pergunto: para que limitarmos as nossas fronteiras? Como se isso fosse possível! As máquinas não nos afastam das pessoas ou da natureza, pelo contrário; elas ampliam a nossa compreensão do mundo e estendem o nosso afeto, mostrando aos amigos quem somos, onde estamos, o que vemos e o que sentimos.

Cada ponto numa rede, cada website, cada blog ou fotolog correspondem, sem exceção, a pessoas como nós. Vivinhas, de carne e osso, talvez existindo como matéria em outra latitude mas, como espírito, muitas vezes mais próximas do que os nossos vizinhos de porta.

Reconheço que lidar com essa abstração nem sempre é fácil para quem ainda vê as máquinas como um fim em si mesmas. É normal, isso. Sempre que a Humanidade muda de paradigma, há quem lamente o que se perdeu: já na Grécia antiga houve quem se revoltasse contra a escrita, aquela função vulgar de escravos que pôs a perder o belo hábito milenar de se trazer todas as histórias na memória.

* * *



Ainda outro dia discuti isso mais uma vez com o meu amigo, ao nos encontrarmos em plena Lagoa. Eu ia andando devagarinho, observando cada detalhe e fotografando aqui e ali; ele ia velozmente, pedalando a sua bike .

— Deixa essa máquina para lá — admoestou. — Você está vendo o mundo através de uma lente!

Taí: se estou, não tenho reclamações. Ando bem contente com essa lente, que já me mostrou lesmas, peixes variados, biguás, garças e socós — sem falar em duas lindas capivaras.

Um dia, quando estiver a pé, ele ainda vê uma delas.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.12.2003)

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