10.3.05



"Puente del mundo,
corazón del universo"

Baseado no onipresente canal, o moto do Panamá
revela que, em termos de auto-estima, o país vai bem


Sem o canal, o Panamá não existiria -- assim como não existiria a palavra que o Aurélio define como "administração ruinosa duma companhia cujos administradores buscam locupletar-se à custa dos acionistas; roubalheira em empresa ou em repartição pública". Aquela mesma, que Mamãe conheceu ainda criança em Budapeste, antes até de saber que existia um país com este nome.

Acontece que, em 1878, os franceses conseguiram uma concessão do governo colombiano para a construção de um canal em seu território. Como à frente da empreitada estava o conde Ferdinand de Lesseps, vitorioso construtor do Canal de Suez, as ações da Compagnie Universelle du Canal Interoceanique foram um sucesso de vendas. Muita gente investiu as economias da vida toda naquela aventura aparentemente garantida.

Uma coisa, porém, era tirar areia do deserto -- onde, fora o calor e uma ou outra tempestade de areia, havia poucos inimigos naturais. Outra, bem diferente, era enfrentar o lamaçal e as condições de insalubridade de uma região singularmente inapropriada para a sobrevivência humana. Mais ou menos como no caso da nossa Madeira-Mamoré, centenas de milhares de trabalhadores foram recrutados do mundo inteiro, para ser dizimados por quedas de barreiras, encontros com animais silvestres, febres e doenças de todos os tipos. Sete anos depois do início das obras, os franceses jogaram a toalha, levando multidões à falência e dando à região do Panamá o sinônimo pouco edificante.

A criação do canal, contudo, se fazia necessária aos Estados Unidos, já que, uma vez pronto, aquele seria o caminho mais curto entre suas costas Leste e Oeste. A concessão para a construção foi negociada com os franceses, mas o projeto esbarrou num pequeno entrave: a Colômbia não concordava com os termos propostos. Que fazer? Ora, ora, imaginem: não há canto deste planeta, por remoto que seja, que não tenha a sua meia dúzia de separatistas ferrenhos. Pois os americanos procuraram os separatistas panamenhos, entraram com a grana e um certo know-how e, em dois tempos, o Panamá era um país totalmente independente da Colômbia. ¿Sencillo, no, mamita?

Poucos dias depois da proclamação da independência, em fins de 1903, lá estavam os americanos, mãos à obra. Dez anos e U$ 387 milhões depois, no dia 15 de agosto de 1914, o vapor Ancon, cuja sineta se pode ver até hoje no imponente prédio da administração do canal, singrava as águas da oitava maravilha do mundo moderno. Do começo francês à conclusão americana, o Canal do Panamá custou 20 mil vidas.

Ele custou também muita confusão entre os americanos e os panamenhos, compreensivelmente incomodados com o fato de não só o canal mas também a terra às suas margens pertencerem aos Estados Unidos -- que proibiam a livre circulação dos "nativos" pela chamada Zona do Canal. Em 1977, depois de décadas de litígio, os presidentes Carter e Torrijos assinaram um novo acordo, pelo qual, gradativamente, os americanos passariam o comando e a posse da área ao Panamá.

Ao meio-dia do dia 31 de dezembro de 1999, as bandeiras norte-americanas foram descidas dos mastros em que tremularam durante tanto tempo pela última vez, e foram vendidas por U$ 25 cada a caçadores de relíquias históricas. Mas, bem antes disso, os civis e militares americanos que lá viviam já haviam feito as malas, trancado as portas das suas casas, hospitais, escolas e quartéis, e dado um sentido adeus ao paraíso.

* * *

Para os panamenhos, a verdadeira independência está sendo um duro aprendizado. Se, por um lado, a tutela dos Estados Unidos era sufocante, por outro era também tranqüilizadora: ninguém precisava se preocupar com nada, porque os americanos -- que empregavam, direta ou indiretamente, milhares de pessoas -- cuidavam de tudo. Os salários eram altos e, mesmo nos mais humildes empregos, faturava-se algo em torno de U$ 5 por hora.

Cinco anos depois da partida dos gringos, a Zona do Canal é uma cidade-fantasma. Aqui e ali há uma edificação restaurada e habitada, mas a maioria das casas e instalações deteriora-se, abandonada: a grama dos campos de golfe não existe mais, os hospitais e as escolas continuam fechados, os edifícios imensos das casernas, desertos.

Dos três milhões de habitantes, 20% estão desempregados, e as conseqüências disso se fazem sentir nos índices de alcoolismo, consumo de drogas e criminalidade. Como um adolescente que se vê subitamente livre da presença de um pai opressor mas generoso, o Panamá parece algo aturdido.

Por outro lado, ao contrário do que previam os pessimistas, o Canal, bem ou mal, continua funcionando; a capital, onde há um banco em cada esquina, é viva e alegre, cheia de novos edifícios e shoppings riquíssimos. O turismo, vocação natural do país, começa -- finalmente! -- a ganhar a força que merece: bons hotéis e resorts de sonho pipocam por toda a parte.

O que vale é que, com ou sem panamás, o Panamá gosta muito do Panamá.

Ele merece.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.10.2005)

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