Deu na Folha
Nelson Ascher escreveu este artigo sobre meu Pai:
Escola de tradutores
Paulo Rónai (1907-92), o intelectual húngaro que, fugindo da morte certa na Europa Central quando esta se encontrava à beira do apocalipse, trouxe de lá para o Brasil um know-how a respeito da tradução literária que nos fazia falta, batizou uma de suas melhores coletâneas ensaísticas de "Escola de Tradutores" (1952). Apesar do nome, o volume não é um manual sistemático do ofício, mas antes um conjunto de exemplos e sugestões derivados de seu exercício.
O ensaísta e tradutor, que devia a sobrevivência ao apetite por línguas e autores mal conhecidos em seu país, obtivera o quase impossível visto que lhe permitira vir para cá no começo dos anos 40 porque, latinista de formação, responsável por versões para seu idioma de Horácio, entre outros, e especialista também em literatura francesa (divulgava seus conterrâneos em francês e os franceses em húngaro, além de ter feito tese sobre Balzac), dedicara-se apaixonadamente a se familiarizar com as demais neolatinas, chegando enfim ao português.
Como bom centro-europeu, tão logo, com o auxílio de gramáticas e dicionários, dominou este idioma. Em vez de se interessar pelo que faziam os europeus do extremo oposto do continente, ele preferiu se aventurar em distâncias mais exóticas e, na véspera da eclosão da Segunda Guerra, verteu e publicou uma pequena antologia de poesia brasileira ("Brazíliai Üzen Mai Brazil Költök"/ "Mensagem do Brasil -- Poetas Brasileiros Contemporâneos", 1939), na qual incluiu jovens ainda virtualmente desconhecidos mesmo aqui, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Cecília Meirelles e Carlos Drummond de Andrade. É provavelmente dele a primeira tradução para qualquer idioma do poema-escândalo drummondiano sobre a pedra no meio do caminho, texto que debateu com alunos do liceu de Budapeste onde era professor.
Buscando mais informações sobre o novo universo que lhe fora aberto, entrou em contato epistolar com o escritor santista Ribeiro Couto (1898-1963), que trabalhava como diplomata na Holanda. Pouco tempo depois, ele deu a público em seu país também uma antologia de seus versos. Foi em parte graças à tal amizade e a seus serviços em prol da divulgação da literatura brasileira na Hungria que Rónai pôde emigrar para a América do Sul quando as portas de todas as nações do mundo se fecharam para os judeus do Velho Mundo, ameaçados de extermínio pela expansão da Alemanha nazista.
Estabelecendo-se nestes trópicos, sua curiosidade não só não se arrefeceu, como se aguçou, e o magiar tornou-se um dos primeiros a estudar a sério a obra dos poetas acima e esteve igualmente entre os pioneiros que reconheceram de imediato a importância do trabalho de Guimarães Rosa. Infelizmente, o interesse que existia e existe em sua terra natal pela cultura brasileira não dispunha de uma contrapartida local, de um interesse pelo que se fazia no seu canto original do continente.
Devido a isso, ele passou muito de seu tempo não apresentando ao público nacional os clássicos húngaros, mas sim ensinando latim e prosseguindo em português sua divulgação de obras francesas. Embora talvez exista hoje um mercado para aquilo que, na época, apenas ele teria podido fazer, não era este o caso outrora.
Vários tradutores brasileiros o haviam precedido no costume de aconselhar seus colegas de profissão, e um dos mais notáveis foi um tradutor oitocentista, o maranhense Manuel Odorico Mendes, que, nas notas às suas excepcionais versões de Homero e Virgílio, o fez explicando, às vezes minuciosamente, algumas de suas opções. O húngaro, porém, merece ser considerado o inaugurador no Brasil da abordagem empírica e pragmática dos problemas que quem quer que resolva transpor uma obra de um idioma estrangeiro para o nosso corre o risco de encontrar.
Pois, apesar da propensão universitária (nem sempre inútil nas humanidades) a converter conclusões derivadas do corpo-a-corpo com a palavra escrita em doutrinas rebuscadas e abstratas, a tradução literária nunca deixou de ser uma tarefa eminentemente empírica, que se nutre da experiência de seus profissionais e que se aprende e se aperfeiçoa na medida em que é posta em prática.
Há, sem dúvida, até críticos que se acreditam capazes de julgá-la lançando mão de teorias aparentemente bem fundamentadas e que acenam com a infalibilidade quase teológica do juízo objetivo. No entanto, assim como em qualquer outra arte que requer criatividade e imaginação, os méritos de uma tradução só podem ser inteligentemente avaliados pela leitura sensível e informada de seus resultados. Ou, formulado de modo diferente: se funciona, é bom; se não funciona, não há instituição ou Ph.D que salve o trabalho.
Não obstante sua comprovada utilidade, seguem sendo escassos em nosso país os tomos que dêem continuidade ao exemplo oferecido por Rónai. Haroldo e Augusto de Campos desempenharam um papel central na explicitação dos recursos que contribuem para transformar um poema inglês, digamos, ou russo, alemão, provençal, num objeto esteticamente digno em português do Brasil. Seu empenho, todavia, foi a exceção, não a regra. E, embora eu tenha certa vez dado um breve curso sobre o assunto, sinto-me meio cético acerca da utilidade de discussões grupais. Orientar-se pelo "caminho das pedras" requer mais livros do que aulas. A literatura e tudo o que com ela se relaciona, incluindo sua tradução e leitura, são, afinal, afazeres solitários cuja meta última talvez seja justamente a de ampliar o espaço interior da individualidade. (Nelson Ascher)
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