31.3.05










Livin' la vida loca

Às vezes, fugir do mundo não é uma opção de todo ruim

Miami é uma festa. O verão ainda nem deu as caras e o povo já cozinha ao sol das praias mais bem cuidadas da América Latina. O fervo começa cedo, ou termina tarde; tudo depende do ponto de vista. Janta-se às sete, mas às três os bares de South Beach já estão cheios. A galera que dançou até às quatro da manhã numa boate pode ser vista duas quadras adiante, meia hora depois, fazendo fila para entrar em outra, onde um novo set de DJs começa os trabalhos às cinco. Depois disso não sei o que acontece; sou de um modelo antigo, que precisa dormir um pouco de vez em quando, e isso atrapalha a investigação.

É verdade que caí na cidade bem em meio ao M3, Miami Music Multimedia, grande celebração da música eletrônica e de um jeito clubber de ser, mas não é à toa que ele se realiza lá. Se todos os alto falantes de todos os carros envenenados que circulam por Miami fossem ligados ao mesmo tempo, o som daria a volta ao mundo várias vezes. Felizmente os carros sossegam enquanto os donos bebem, de modo que o som não ultrapassa as fronteiras do condado. Miami dorme e acorda ao bate-estaca do techno, que escapa, em todas as suas variantes, gêneros e sub-gêneros, de uma festa aqui ou um carro acolá.

* * *

Não gostar de Miami é uma reação tão comum que, dessa vez, fui disposta a fazer uma reavaliação. Minha disposição natural em relação ao mundo, de modo geral, é gostar; não gosto de não gostar. Além disso, uma cidade como Miami é tão complexa, e tem tantas nuances, que chega a ser absurdo generalizar. Não existe uma Miami, assim como não existe um Rio de Janeiro; existem milhares de Miamis, feitas à imagem e semelhança de quem as vive. Alguém pode detestar uma viagem que adoraria se ficasse hospedado dois quarteirões adiante; o bairro que um dia é um tédio, no outro pode ser uma revelação. Não há absolutos.

Isso, objetivamente. Subjetivamente, as cidades, como as pessoas, têm um jeito de ser, uma aura, karma ou lá como se chame, com o qual a gente vai ou não vai -- e não há racionalização que mude isso.

Miami é linda e bem cuidada, tem praias que me enchem de inveja pelo azul caribenho e pela água quentinha, os bandos de pássaros que se vêem por toda a parte são alegres e confiantes mas, com tudo isso, não consigo fugir do lugar comum. Não consigo gostar de Miami.

O hotel ótimo, o tempo maravilhoso, uma lua que nem te conto -- e algo indefinível que me dava uma vontade louca de fugir correndo e voltar para casa. Não sei exatamente o quê, mas imagino um conjunto de fatores, a começar pelos rios de dinheiro que correm por todos os lados. Dos carros impossíveis às roupas duvidosas, tudo tem uma única finalidade: proclamar para o mundo o elevado status financeiro dos donos. Mas pior do que assistir a este show bizarro de riqueza -- que sequer chega a ser característica exclusiva de Miami -- é saber o que o torna possível. Afinal, dez entre dez corruptos da América Latina consideram a cidade o seu segundo lar.

A cidade não tem culpa disso, coitada, nem os habitantes que dão duro e ganham o seu pão honestamente; mas é o tal do karma. O fato é que olho para aqueles condomínios de luxo elegantíssimos, finíssimos, metidíssimos-íssimos-íssimos... e a única coisa que me vem à cabeça é a fita do juiz Nicolau, na plenitude de sua obscenidade, fazendo o tour do apartamento milionário.

* * *

Miami estava, naturalmente, siderada pelo caso Terri Schiavo. O ódio pelo marido me pareceu universal -- como se os pais, principais responsáveis pelo circo armado em torno da pobre moça, fossem anjos de candura, e estivessem agindo movidos pelos melhores sentimentos.

O comportamento das partes, cada qual tentando prejudicar mais a outra, me lembrou, mal comparando, a situação dos hospitais no Rio, em que a população, como Terri Schiavo, é o que menos importa.

Nessa história sem mocinhos, o que eventualmente poderia ter sido um debate importante e necessário sobre os limites da vida transformou-se num espetáculo degradante e deprimente, estrelado por advogados, políticos e celebridades religiosas.

Depois a gente estranha que a garotada se jogue nas raves 24 horas por dia e se desligue do mundo...

(O Globo, Segundo Caderno, 31.3.05)

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