24.3.05





O mineiro desesperado e o holandês voador

Fernando Henrique Ferreira, 48 anos, casado, pai de família, tem um ateliê em Caxambu. Fabrica peças em papel machê, que vende para o exterior através da ONG Mãos de Minas. Em novembro de 2004, durante uma feira de artesanato em Belo Horizonte, um importador holandês chamado Jan Piet Hartman ficou interessado no seu trabalho, apresentado no estande do Sebrae e, por telefone, convidou-o para um encontro no Hotel Boulevard.

Fernando pôs o mostruário no carro e foi para a capital. As peças que levou causaram tão boa impressão que o holandês encomendou, no ato, 1.500 peixes e 3.325 objetos de decoração variados -- araras, tucanos, galinhas d?angola, pequenas cenas de praia. Os dois acertaram o preço total de R$ 25.450, dos quais 25% seriam pagos no início de janeiro, e o restante contra a entrega, em princípios de março.

Fernando voltou entusiasmado para Caxambu: não é todo dia que um artesão do interior recebe uma encomenda dessas. Para poder aprontá-la a tempo, contratou seis auxiliares diretos e 40 terceirizados. Investiu tudo o que tinha na compra de material e no pagamento dos trabalhadores.

Quando janeiro chegou, a encomenda ia adiantado. Fernando telefonou para a Brasil Trade, em Maceió, para pedir o adiantamento prometido. Mas Marcelo Gomes, sócio brasileiro de Jan Piet Hartman, disse que o parceiro se enganara, e que o sinal só seria pago no fim do mês.

Sem capital, Fernando se viu obrigado a vender o carro e os poucos bens que possuía -- um freezer e uma televisão -- para dar continuidade ao trabalho. No fim do mês, ainda sem notícias do dinheiro, ligou para o próprio Jan Piet, com quem havia combinado a transação. Ficou sabendo então que o gringo mudara de idéia: agora, estava às voltas com um negócio de calçados em Franca, e não tinha mais interesse no artesanto.

No ateliê humilde de Caxambu, mais de três mil peças bonitas e coloridas esperam por comprador. Hoje, porém, elas são a única coisa alegre da vida de Fernando, que está atolado em dívidas, sem o carro de que depende para viver e sem esperanças de resolver a situação. É que, como acontece regularmente no artesanato, não há contrato escrito entre as partes; os Jan Piets da vida enriquecem em Amsterdam, enquanto os Fernandos vão à falência no interior do Brasil.

* * *

Esta história, assim mesmo como está aí, mais ou menos com essas mesmas palavras, foi contada por Esther Maria Duarte Bittencourt, moradora da região e autora do excelente blog "Porcas e parafusos" -- um perfeito exemplo do jornalismo individual que a Internet permite.

-- Este senhor já era meu comprador, só que a gente não se conhecia antes -- me disse Fernando, ao telefone. -- Ele adquiria as peças através da ONG (Mãos de Minas). Desta vez me procurou diretamente. Não dava para imaginar que faria uma coisa dessas. É um homem educado, bem vestido, de fino trato. Ficamos amigos. Sei que fui ingênuo, mas, acredite, acordo apalavrado é o que mais tem aqui no interior, a gente trabalha sempre assim. Aceitei também porque, sem a ONG, a transação ficava mais lucrativa.

Pela transação "mais lucrativa" que o levou à ruína, Fernando receberia cerca de R$ 5 por peça. Descontem-se daí todas as despesas envolvidas e o resultado é um grande nó no estômago.

Ler o que Esther escreve, aliás, é descobrir mais um pedaço de Brasil desesperado:

"Caxambu é uma cidade no Sul de Minas Gerais com tudo para dar certo", diz ela. "Doze fontes de água mineral medicinais e um parque agradável, sem qualquer projeto turístico. Imagine uma única fonte de água mineral medicinal numa cidade do exterior e como estaria o turismo nesta cidade!

Caxambu está às moscas. Hotéis fecham as portas, outros demitem os funcionários. Lojas vão à falência. O Hotel Glória, um dos mais tradicionais, lançou um plano de demissão voluntária, mas nenhum funcionário deseja perder os direitos trabalhistas. O único cinema local fechou as portas porque não consegue pagar o IPTU.

Então, se não tem para quem vender na cidade sem turista, o que faz o artesão? Ou fica nas mãos do atravessador, o que acontece com freqüência, ou filia-se à ONG que não tem como absorver toda a produção da região. Entre um talvez ou oitenta centavos, melhor a última opção.

E é assim que acontece. Para nós que temos ferramentas tecnológicas, que lemos jornais e livros, temos educação formal e estamos antenados com o mundo, esta história beira o realismo fantástico. É por isso que as novelas da Globo que abordam este tema fazem tão pouco sucesso no interior. Aqui, a realidade supera qualquer coisa que a imaginação invente."

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Quem desejar mais informações sobre o trabalho de Fernando pode acessar o site www.ateliedepapel.com.br.

Enquanto existe.

(O Globo, Segundo Caderno, 24.3.05)

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