17.3.05



Bom, essa vocês já conhecem...

Flagrantes da vida virtual

Foto e considerações recortadas do diário eletrônico da vossa cronista

O que é que faz um artista que atinge o auge da perfeição possível com um espetáculo? Repete este espetáculo até o fim dos seus dias? Tranca-se em copas e vive da glória passada? Muda de profissão? Retira-se para um convento? Ou enche-se de coragem, deixa o que passou para trás e mergulha num projeto radicalmente diferente? Diante deste dilema, Maria Bethânia, não fosse quem é, nem esperou assentar a poeira de Brasileirinho, provavelmente o melhor show da MPB de que se tem lembrança, e partiu para Tempo tempo tempo tempo.

O show não é melhor do que Brasileirinho, porque nada pode ser melhor do que Brasileirinho. Mas, por outro lado, Tempo tempo tempo tempo simplesmente não pode ser comparado com Brasileirinho -- e aí está o segredo do seu sucesso. Os shows são tão diferentes entre si quanto podem ser dois shows feitos pela mesma pessoa.

Brasileirinho era quase um resumo da História do Brasil, um show solidamente amarrado a um fio condutor, uma espécie de missa em celebração ao país a que o público assistia mudo e hipnotizado. Tempo tempo tempo tempo é um buquê de canções gostosas e variadas, que nos fizeram companhia em bons e maus momentos, e que entraram, cada qual à sua maneira, na trilha sonora das nossas vidas.

Se há algum fio condutor no show é a homenagem a Vinícius, a ênfase nos seus poemas e nas suas músicas; mas, honestamente, nem disso ele precisa. Se em Brasileirinho Maria Bethânia celebrava a Pátria, agora ela celebra o indivíduo, o amor, o momento pessoal, a vida miudinha (mas nem por isso menos apaixonada) de todos e de cada um. Este é um espetáculo em que se comemora, pura e simplesmente, a alegria de cantar. Aproveitando a deixa, o mesmo público que assistia a Brasileirinho mesmerizado e eventualmente em lágrimas, agora acompanha as músicas, canta junto, faz a festa (observa Cora, afônica) . Uma delícia!

Sei que não adianta grande coisa dizer tudo isso agora, quando o show já encerrou a temporada carioca, mas não há de ser nada. Tempo tempo tempo tempo é tão bonito, e fez tanto sucesso que, com certeza, volta para cá assim que terminar de rodar o país. Há fãs demais que ficaram no ora veja.

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A maioria das ONGs que se dedicam à defesa dos direitos humanos aqui no Rio tem sido extremamente omissa em relação à Polícia. É como se os policiais não fossem humanos nem tivessem direitos; como se a morte de um policial fosse algo "normal", e a de um bandido, um fato excepcional. A contabilidade é triste. A toda hora morrem policiais em confronto com bandidos, quando não simplesmente assassinados a sangue-frio, e não há uma só ONG que procure as famílias, que dê um alô, ou que -- pelo menos! -- compareça aos enterros.

Com a ditadura militar, ficou difícil para nós, civis, olharmos para pessoas fardadas sem desconfiança; no nosso inconsciente, "eles" ainda são o inimigo. Além disso, depois de tanto ler a respeito de atos criminosos praticados por policiais, ou mesmo nos confrontarmos com eles, fica difícil pensar sobre o assunto com isenção e tentar mudar certos conceitos, cristalizados em anos e anos de repressão e de "Chame o ladrão!".

Tem mais: para quem ama a paz, a violência é sempre abominável. Mas como a bandidagem não usa uniforme, a imagem do que nos assusta acaba, lamentável e invariavelmente, se materializando nas fardas. Pois acho que já está na hora de fazermos um esforço para olhar para a polícia com objetividade e sem preconceitos. Há muitos policiais do bem, e é com eles -- e apenas com eles -- que contamos para sair do abismo de insegurança em que mergulhamos.

Acho, sinceramente, que a sociedade devia tratar melhor a polícia. Devia pagar melhor a esses homens e mulheres que tantas vezes se arriscam por nós, deveria estimular mais os bons policiais, deveria protestar com veemência quando os bons elementos são transferidos ou encostados assim que a sua atuação começa a incomodar os poderosos -- vide o caso do destemido delegado Antônio Rayol, que ousou prender em flagrante Duda Mendonça, o marqueteiro do Rei.

Com quem é que os bons policiais podem contar se não for conosco?! Os bandidos querem dar cabo deles, os maus colegas querem vê-los longe e a Secretaria de Segurança... bom, essa, nem falar.

Às vezes discuto essa questão com os colegas. A maioria acha que não adianta fazer nada, que 80% dos PMs são corruptos, e que pelo menos metade dos policiais civis também é. Não tenho como avaliar estatísticas assim, nem sou especialista em polícia, mas tenho certeza absoluta de uma coisa: 100% dos bandidos são bandidos.

Por isso, fiquei contente quando foi criada a ONG Viva Polícia, que pretende fazer o que as outras, burramente, não fazem, ou seja: dar força a profissionais injustiçados, trabalhar para melhorar a auto-estima da polícia em geral e as suas relações com a sociedade. Por isso estou contente agora que seu website entrou no ar, em vivapolicia.org.br. Boa sorte, pessoal!

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Estou com Arnaldo Jabor e não abro: é preciso criarmos, urgentemente, um Partido do Rio de Janeiro. Já! Para ontem!

(O Globo, Segundo Caderno, 17.3.2005)

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