3.2.05




Manu Chao e o choque da realidade

Lá estava eu lendo o jornal, tranqüilinha, quando descobri que logo mais rolava um show do Manu Chao no Circo Voador. Como assim, Manu Chao? No Circo Voador? Em plena segunda? Que maravilha! Liguei para uma amiga:

-- Olha que bom, tem show do Manu Chao hoje à noite, no Circo Voador!

-- E você está querendo ir?!

-- Claro que estou! Tem jeito melhor de começar a semana?

-- Ah, tem sim. Vários.

-- Mas é o Manu Chao, puxa...

-- Mas é o Circo Voador, ora.

-- Que é que tem? A gente já foi tanto ao Circo Voador!

-- "Foi", disse bem. Foi. Há quanto tempo você não vai lá?

-- ...

-- Então?

-- Calma, não faz tanto tempo assim. Só estou tentando lembrar...

-- Está vendo o que eu quero dizer?

* * *

Às dez e meia, quando ela ligou avisando que estava passando na redação para me pegar, reclamei: estávamos atrasadas até pelos meus parâmetros. O show começava às dez. Ela caiu na gargalhada:

-- É, faz tempo mesmo que você não vai lá...

Chegamos às onze, e de fato nada dava a impressão de que algo aconteceria num futuro próximo; muito menos, de que este algo seria um show do Manu Chao. O único algo mencionado nos cartazes e ingressos chamava-se La Phaze. Havia uma fila razoável na porta, mas dentro um telão mostrava um clipe caído do David Bowie, enquanto os presentes passeavam distraídos, bebendo cerveja e falando inglês. Eram turistas, claro, que também acreditaram no horário divulgado.

* * *

Além de turistas, eram todos muito jovens; mais jovens, mesmo, do que os meus filhos. Aqui e ali, uma pessoa da minha idade, ou quase, igualmente deslocada e perplexa. Trocávamos olhares cúmplices e a minha amiga cutucava, maldosa:

-- Olha lá, coitado! Ele também caiu no conto do Manu Chao! E olha aquele casal ali, perdidinho... Vocês deviam ter alugado uma van, todos juntos, para passar o fim de semana em Mauá. Levavam uns CDs da Mercedes Sosa, do Inti Illimani, da Violeta Parra... Aposto que iam se divertir muito mais.

O pior é que eu começava a desconfiar que ela tinha razão. Quando um DJ finalmente subiu ao palco, tive certeza. Nem o pessoal que estava dançando manifestou qualquer entusiasmo.

-- Este aí é o La Phaze?

Minha amiga descolada não sabia. Perguntamos a algumas pessoas à nossa volta, mas ninguém sabia -- e, pelo que percebi, ninguém se importava. O que parecia ser consenso é que o moço já tinha esgotado a sua acolhida. Estava na hora de dar lugar a quem quer que estivesse escalado; mas o DJ não dava mostras de querer ir embora.

Subimos nas arquibancadas, descemos, comemos acarajé, subimos de novo... e o DJ lá. Meia-noite, e o ambiente estava começando a esquentar. O número dos que falavam português já era igual ou superior ao dos que falavam outras línguas, todos vaiavam o DJ com a mesma empolgação, mas isso não mudava em nada o fato de que eu estava na contramão da faixa etária.

Alguns olhavam para mim abertamente, como se estivessem tentando descobrir se eu vinha do paleozóico ou do mesozóico. Quando percebiam que eu os percebia, sorriam com ternura, como a gente sorri para criancinhas ou velhinhos que estão fazendo algo particularmente exótico para a sua idade. A sensação é parecidíssima com a de quem usa manequim 44 ou 46 na Fashion Rio: nenhuma faz bem à auto-estima.

-- Cadê aquela van que você falou? -- perguntei à minha amiga. -- Está na hora de ir para Mauá.

Enturmada com outros amigos que encontramos, ela resolveu ficar; enquanto eu, irritada com a roubada mas aliviada por ir embora, tomei o rumo de casa. Estava no portão do Circo Voador quando uma grande agitação tomou conta do espaço. Parei para ver o que era -- e não é que lá estava o Manu Chao prometido? Voltei rapidinho, ignorando os olhares de curiosidade da garotada.

Então eles acham que ninguém sabia se divertir no pré-cambriano?!

* * *

Manu Chao cantou quatro músicas, levou a platéia ao delírio e caiu fora. Para mim, valeu, até pela inesquecível aventura antropológica. Tenho um fraco incorrigível por ritmos latinos e por artistas que reclamam contra o estado geral do mundo, sobretudo quando fazem isso com boa música e com bom humor, como ele faz.

A quem nunca ouviu Manu Chao, mas que não se importaria de estar naquela van rumo a Mauá, recomendo calorosamente. "Clandestino", um de seus CDs mais recentes, não faria feio em Woodstock.


(O Globo, Segundo Caderno, 3.2.2005)

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