9.2.05





Capivara, Luma, escolas:
fragmentos de carnaval

São três dias de folia e brincadeira...
para não falar em questões mais sérias


Quando acordei no domingo e vi aquele céu claro, tão limpinho depois de um tempo aparentemente interminável de chuva, agradeci a Quem de Direito -- e, como o resto da cidade, fiquei na torcida. Gosto de carnaval até debaixo d'água, mas convenhamos que, a seco -- pelo menos meteorologicamente falando -- tudo fica melhor, da farra inocente dos bloquinhos modestos à apoteose da Sapucaí. Ó, Aí de Cima: valeu!

* * *

-- Há um começo de movimento de retorno às marchinhas sim, -- confirmou Eduardo Dusek. Nós nos encontramos à noite, na ida para o Sambódromo, e conversamos sobre isso. No dia seguinte, de tarde, a estréia do bloco Capivara Ensaboada confirmou a tendência. Repetida algumas vezes entre antigos sucessos, a Marcha da Capivara "pegou" entre os foliões, que, tarde da noite, voltavam para casa cantando a musa:

A roedora foi parar lá na Baixada
Ai meu Deus que tremenda solidão
Prender a bicha assim não é legal
Solta a capivara nesse carnaval.

* * *

Já outra musa, a Luma, foi motivo de polêmica com os colegas que fecham a primeira página. Ninguém discute a beleza da Luma ou da foto que saiu na capa de domingo mas, pelo menos na minha cabeça, esses não são os únicos critérios que devem orientar a escolha da principal foto da primeira página de domingo do meu jornal. Digo "meu jornal" não apenas como jornalista da casa, mas também como leitora apaixonada do Globo.

Ninguém tem nada a ver com o que acontece entre a Luma, o ex-marido, o bombeiro e o soldado, mas promover alguém que mente patologicamente e que manipula a imprensa como ela faz -- inclusive fisicamente, que o diga o fotógrafo da "Caras" -- é tripudiar da nossa profissão e apresentar ao leitor uma escala de valores lastimável.

Uma foto da Luma na primeira página do jornal equivale, para mim, ao seguinte recado:

"Se você tiver uma bunda suficientemente bonita pode fazer o quiser, que para nós não tem importância. Pode mentir e desmentir tudo o que mentiu à vontade, pode até achar ótimo ver gente apanhando, que nós relevamos. A única coisa que conta é ser gostosa."

Expus meus argumentos e os colegas ficaram até ligeiramente abalados -- mas não o suficiente para trocar a foto:

-- Ah, é carnaval, e ela é a cara do carnaval.

Fui voto vencido, mas não convencido.

Luma só é a cara do carnaval porque a imprensa decidiu que ela é a cara do carnaval; ora, uma vez que ficou decidido que ela é a cara do carnaval, ela passa, automaticamente, a ser a cara do carnaval. Mal comparando, como os bicheiros homenageados na avenida -- todos eles, também, a cara do carnaval.

Algo me diz que, dando continuidade à tradição iniciada no ano passado, no carnaval que vem devo voltar ao assunto. Até que apareça uma nova "cara do carnaval", continuaremos assim: os rapazes da primeira página dando a Luma em destaque lá, e eu dando um ataque de nervos aqui. *suspiro*

* * *

Mistério: por que é que a escola que tem as cores mais bonitas faz questão de ir contra o seu verde e rosa, tão carregados de tradição?

Desfilando sem as suas cores, a Mangueira simplesmente não é a Mangueira, é uma escola qualquer. E que enredo desengonçado! Dava dó ver os componentes fantasiados de torre de transmissão, fazendo aquele esforço todo para sambar sem romper os fios que os uniam. Aliás, com aquela quantidade de torres e cabos, dona Dilma do Lula nunca mais precisaria explicar nada a ninguém. O que fica difícil de explicar é como escolas tarimbadas como Mangueira e Portela insistem em dar tantos tiros nos próprios pés.

Já a Viradouro, que não agradou a alguns especialistas, foi cativante do começo ao fim, com carros criativos e bem acabados, fantasias de bom-gosto e um samba ótimo de cantar. O desfile visto pelo setor 1, onde eu estava, foi lindo e cheio de surpresas, perfeito apesar do carro quebrado a reboque. A escola saiu de lá campeã, e assim ficou no meu coração até a entrada triunfal da Imperatriz, que lavou a alma de um sambódromo traumatizado pelo triste espetáculo da Portela.

Fala-se muito dos carnavais "tecnicamente corretos" da grande Rosa Magalhães, como se isso fosse uma espécie de defeito. Pois se é, eu bem que gostaria que todas as escolas sofressem disso. A Imperatriz se renova a cada ano, não recicla idéias, não apela para o grotesco ou para a vulgaridade. A despeito de todas as novidades apresentadas pela Unidos da Tijuca, que de fato está criando um estilo próprio, a minha grande viagem fiz, este ano, nas asas dos seus cisnes inesquecíveis.

(O Globo, Segundo Caderno, 10.2.2005)

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