Xô, helicópteros! (A Lagoa é nossa!)
Não tenho nada contra o setor hoteleiro, quem tem?, mas que, ultimamente, ele anda ultrapassando o foyer, lá isso anda. Primeiro fez aquele escarcéu quando o Manoel Carlos resolveu matar a Fernanda de “Mulheres apaixonadas” com uma bala perdida, como se disso dependesse a reputação da cidade. Logo em seguida partiu em defesa do heliponto da Lagoa.Também não tenho nada contra o heliponto da Lagoa. Enquanto heliponto. Acho até bonito os helicópteros pousando, decolando e, sobretudo, voando em frente ao Cristo, feito insetos gigantescos. Mas tenho tudo contra qualquer coisa que atrapalhe o carioca no gozo de sua cidade. E o heliponto o faz.
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— Deve prevalecer a qualidade de vida da maioria — disse o prefeito ao Ancelmo Góis, com inesperada sensatez. Nem parece o mesmo prefeito do Guggenheim.
Este bom senso elementar, porém, parece faltar ao vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Hoteleira (ABIH), Ângelo Vivácqua, que acha que o heliponto deve ficar lá, interrompendo os álacres (!) caminhantes para... não atrapalhar o turismo!
— A vista proporcionada pelos pousos e decolagens da Lagoa é uma das principais atrações nos sobrevôos que os turistas fazem pela cidade, — declarou ele ao GLOBO no último dia 5. — Se o problema é a ciclovia, ela que seja desviada.
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Se entendi bem, senhor vice-presidente, quer dizer que as prioridades da cidade devem ser decididas única e exclusivamente para o conforto e bem-estar dos turistas?!
Entendi bem?!
Ainda que eu esteja enganada e que a prioridade seja esta mesmo —- alguém me explicaria, então, a odiosa discriminação contra justamente a maior parte dos turistas, aqueles turistas médios, que por acaso sustentam o turismo andando na Lagoa e comprando água de coco, mas não têm dinheiro para vôos panorâmicos? Será que eles não são dignos de passear por aquele trecho tão bonito?
Quando eu era criança e o mundo mais espaçoso, muita gente ainda tinha sala de visita —- em geral o melhor cômodo da casa, o mais bem decorado e arrumado e, paradoxalmente, o menos usado de todos.
As mães tinham horror de que nós, crianças, fizéssemos bagunça na sala de visita; detestavam, igualmente, que os maridos ficassem por lá, fumando, lendo jornal, e pondo copos ou xícaras em cima dos móveis de madeira lustrada.
Por isso a sala era sempre um espaço ocioso, mal aproveitado, aberto apenas em dias de festa, pois as visitas apareciam muito raramente — na maior parte das vezes, aliás, para extrema aflição da família, tanto que havia um elenco de procedimentos para afungentá-las. Me lembro bem de dois deles, vassoura de cabeça para baixo atrás da porta e sal no fogo — mas isso é outra história.
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Mais do que o desperdício de área útil, me chamava a atenção a tristeza daquelas salas, com as quais ninguém tinha qualquer familiaridade, e de que ninguém gostava de verdade, nem mesmo a dona da casa.
Não sei se ainda se reservam salas para as visitas, mas elas sempre me voltam à lembrança quando o turismo é apontado como principal motivo para se fazer, ou não, alguma coisa pela cidade. Não percebem que não precisamos de salas de visitas. Precisamos é de cuidar melhor da sala de estar, da cozinha, do banheiro, de onde se vive a vida real.
Tudo, por tabela, para as visitas, para os amigos, aberto com toda a nossa simpatia. E, para alguns, até com amor.
(O Globo, Segundo Caderno, 17.7.2003)
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