A vida como ela é, ou o que se vê pelo mundo
Há mais coisas entre o céu e a Terra do que violência, hostilidade e cafajestadas em geralNo domingo passado, várias coisas interessantes aconteceram pelo mundo. Um grupo de turistas descobriu, admirado, um fjord norueguês; em Tóquio, quatro peixes fizeram uma demonstração de nado sincronizado numa frigideira; em Anchorage, no Alasca, um piloto finlandês fatiou um salmão com rara maestria, usando uma faca ulu, típica dos esquimós up’ik; em Hasselt, Bélgica, uma mulher cuidou do jardim; em Yalta deu uma praia que só vendo; em Bellevue, Washington, as bananas começaram a amadurecer; e, por toda a parte, gente de bem divertiu-se com seus cães e gatos.
Nada disso chegou aos jornais porque, naturalmente, não é da rotina que se faz a notícia. Mas quem acessa a internet e já descobriu o Fotolog — uma espécie de diário visual, composto de fotos, legendas e comentários — está tendo a possibilidade de ver, pela primeira vez na história humana, a vida como ela é. De verdade: movimentada, pequena, cheia de detalhes insólitos, flores, bichos, comida, objetos, surpresas aqui e ali. A não-notícia em estado bruto, confortavelmente calma e previsível, com beleza de sobra para quem tem olhos gentis, suficientemente tosca e desagradável para quem fez da vulgaridade a sua opção preferencial.
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A verdade é que, olhando assim de perto, o planeta é espantosamente familiar. O milagre da pequena aldeia global do Fotolog é permitir essa aproximação, que se faz graças a dois ingredientes fundamentais: a internet, que não tem limites de tempo ou de espaço, e as imagens, livres da barreira da língua.
Aqui, de fato, uma imagem pode valer por mil palavras. É curioso — comovente, até — ver o esforço e o empenho das pessoas nessas “conversas” visuais. Alguém mostra, por exemplo, a foto de uma garça na Holanda; ao longo do dia, outras garças iguais ou parecidas vão surgindo, espontaneamente, por todos os cantos. É como se cada um desses que trazem um novo pássaro dissesse: “Olhe, eu também vi um bicho semelhante e também achei importante fotografá-lo, não é que temos mesmo algo em comum?!”.
Desses “papos” já nasceram diversos projetos coletivos, que vão se formando em torno de temas específicos — animais de estimação, cores, antigüidades, roupas no varal, sombras, transporte público... Não há limites, mas a administração do sistema (ou seja, os três rapazes que o inventaram, nos Estados Unidos) não aceita pornografia ou temas escabrosos de modo geral.
Participar do Fotolog, pulando de país em país e recebendo visitas de companheiros de todos os continentes, é uma experiência única, inédita — mas ninguém precisa ser fotógrafo para viajar nesse tapete voador de não-notícias. Bastam uma conexão e o sentimento do mundo.
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Para começo de conversa, o texto de “Tio Vânia” não só podia ter sido escrito ontem, como podia se passar ali na esquina. Vejam: as florestas vêm sendo dizimadas a uma velocidade espantosa e o ecossistema está em situação precária, assim como a alma das pessoas, cada vez mais fúteis, desligadas e auto-referentes. As relações não funcionam e ninguém está feliz.
Familiar? Bem-vindos à Rússia de Tchekov, que ganha vida no espaço do Parque Lage (na foto) magistralmente criado por Daniela Thomas. Acrescentem o elenco impecável em figurinos caprichadíssimos, a luz perfeita, a direção inteligente de Aderbal Freire-Filho e... bom, o que é que vocês ainda estão fazendo aí? Corram para a fila, porque tem tido casa cheia direto.
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(O Globo, Segundo Caderno, 3.7.2003)
Bastidores: No dia em que eu fui assistir à peça, entrou platéia adentro, a certa altura, um gato lindo, de três patas. Veio se esfregar um pouco na minha perna, depois parou embaixo da cadeira em frente e lá se deitou, na maior calma, bem dono do pedaço.
Fiquei meio preocupada, com medo que a senhora sentada na cadeira escolhida pelo gatinho se assustasse; mas nada aconteceu.
Depois, conversando com os atores, soube que ele é, conforme eu imaginava, íntimo da casa. Chama-se Romário, era o queridinho do Aderbal durante os ensaios e, às vezes, se excede e sobe no palco. Aí a Bel Kutner, que é gateira de carteirinha, gentilmente o tira de cena.
Bom. Este foi o momento Animal Planet. Houve também um momento Discovery: numa das cenas do final, em que a Débora Bloch contracena com o Daniel Dantas, entrou um morcego, e ficou esvoaçando sobre o palco.
Esse causou um certo frisson, mas a meu ver ficou bem no clima. Tem tudo a ver um morcego na sala de um Tchekov. A Débora e o Daniel ficaram na deles, imperturbáveis, como se convivessem com morcegos rotineiramente.
Eu quero assistir à peça de novo, está de fato sensacional. O espaço -- mais ou menos como o daquele cinema ao ar livre que armaram uma vez no Jóquei -- é inesquecível. Acho maravilhoso ver lugares que conheço transformados assim.
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