31.7.03



Trapos no tempo e no espaço

A Bia abriu a porta do meu guarda-roupa. Exclamou:— Mãe! Isso está ridículo! Você tem que tomar uma providência.

Olhei para o amontoado de roupas e tomei a providência cabível: o Disque Sua Irmã.

— Laura! O meu guarda-roupa está ridículo! Você tem que ver!

Minha irmã é o tipo de mulher com quem se pode contar nas emergências. É solidária, tem senso prático, determinação. E duas filhas adolescentes. Ainda está para nascer armário que lhe meta medo. Aproveitamos que o inverno todo caiu no domingo e que ninguém precisou ir à praia para arregaçar as mangas; i.e., ela arregaçar as mangas. A mim, me foi permitido permanecer no quarto, prestando eventuais esclarecimentos técnicos.

— Lixo.

— Pô, uma camiseta da Comdex 86...?

— Lixo vintage. (Pausa) Mais lixo...

— Mas não, essa tem valor afetivo! Foi da campanha das Diretas Já.

— Lixo histórico. E as desse saco?

— Rosinha Não.

— Lixo.

— Lixo?! Rosinha Não?! Ainda vai ter muita passeata precisando...

— Tá, então essas ficam. E isso, o que é?

— Caramba, que legal! O lançamento do 386...! (Para quem não sabe: um chip a vapor.) Essa eu não via há tempos.

A Laura nem se dignou a olhar para mim. Era óbvio que eu não via a parte de dentro do armário todo há muito tempo.

* * *


O que parecia trabalho de algumas horas tomou o domingo inteiro. A arqueologia dos hábitos que me fazem foi mais complicada do que imagináramos. Como todo mundo que vive se desentendendo com a balança, eu também tenho um guarda-roupa em camadas. Numa, as roupas que me cabem direitinho e que se parecem comigo; noutra, as que cabem, porém foram erros terríveis de julgamento; na terceira, as que um dia couberam, e nas quais espero entrar novamente. Ao contrário das que couberam, e estão largas demais — e espero que nunca mais sirvam.

Isso para não falar na camada mais estapafúrdia de todas, a das que nunca serviram muito bem, compradas em momentos de entusiasmo leviano — as que as vendedoras garantiram que ficaram perfeitas.

* * *


Atravessando as camadas todas há um cerne intangível, a célula tronco, situada em plano ainda mais complicado, sentimentalmente, que o das camisetas. Nele, os jeans que usei aos 17 anos quando, ao cabo de um regime de fome, ouvi dos amigos — para meu máximo contentamento — que estava magra demais e precisava engordar. O pretinho básico em que gastei tudo na primeira viagem que fiz a Londres, e que foi, durante anos, a minha melhor roupa. O blazer vinho elegantérrimo, que é tudo o que eu queria ser mas não sou. E assim por diante, sem mais dizer.

Em síntese: meu armário, antes da metódica e eficiente faxina da Laura, era o equivalente a uma gigantesca cebola de pano, em que cada peça guardada podia ser interpretada, metaforicamente, como um pedacinho do passado ou, pior, como um sonho frustrado ou ainda não realizado.

Há um momento na vida, porém, em que a gente tem que ter coragem. E acontece que hoje — exatamente hoje — estou fazendo 50 anos. Nunca mais terei 49. Chegou a hora de jogar fora a camiseta do show do Paul McCartney.

* * *


Não sei se isso é experiência comum aos colegas da safra de 53, mas o fato é que eu, definitivamente, não estava preparada para esta parada. A grande data da minha vida, esperada a vida inteira, foi o Ano 2000. O tema era recorrente, volta e meia alguém tocava no assunto, de modo que, desde criança, tive consciência de que, naquela inatingível data do futuro, eu teria já 47 anos.

Todas as preocupações e todos os cálculos da minha infância e juventude foram, conseqüentemente, desenvolvidos a partir deste número, 47. Os 50 me pegaram absolutamente desprevenida. Agora mesmo, ao digitar 5 e 0 tive profunda sensação de estranheza. Cinquenta?! Como, 50?! Por extenso ou em algarismos?!

* * *


Na hora do jantar, a Bia perguntou sobre o que eu ia escrever.

— Estou pensando nesse lance dos 50 anos.

— Ah, mãe, não acredito! Você vai falar da tua idade?!

— Vou, ora. Não consegui pensar em outra coisa a semana inteira! Tenho que exorcizar.

— Então tá, né? Se é para exorcizar... Embora eu não tenha noção do que você está querendo dizer com isso.

— Pensando bem, já foi exorcizado há tempos. Foi-se a época em que as mulheres paravam de fazer anos aos 35, entende?

— Isso é verdade, progredimos muito. Hoje os homens também mentem a idade. E todo mundo pára nos 38.

— É, mas alguém ainda cai nessa? Adianta alguma coisa? O tempo respeita?

Pois sim... Como diz o Millôr, idade é a que a gente tem na carteira de identidade.


(O Globo, Segundo Caderno, 31.07.2003)

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