O filme que não acabou:
uma noite inesquecível
O ideal da vida é, eu sei, estar no lugar certo na hora certa; mas, às vezes, não há nada como estar no lugar certo... na hora errada! Pois foi isso, justamente, o que aconteceu comigo, e com uns mil outros espectadores do Vivo Open Air, na semana passada, durante a pré-estréia de "Cabra cega" -- o filme que não acabou. Como já sabe quem leu o Xexéo ou foi assistir ao filme numa sala convencional, "Cabra Cega" é ótimo. Em princípios dos anos 70, um guerrilheiro ferido esconde-se no apartamento de um arquiteto simpático à resistência. Praticamente toda a ação transcorre entre quatro paredes, onde se confrontam a raiva obtusa e sacrossanta do guerrilheiro (Leonardo Medeiros), a paciência quase ilimitada do arquiteto (Michel Bercovitch) e a ternura cada vez menos pragmática da militante (Débora Duboc), encarregada de mantê-los a par do que acontece com os companheiros.
Ora, o que acontece não é bom, nada bom. O filme se passa durante os últimos momentos da resistência armada, esmagada pela ditadura. O guerrilheiro assiste, impotente, ao enterro da sua última quimera; incapaz de absorver os fatos, transtornado com o tempo aparentemente interminável do confinamento, transforma o que havia de cordialidade no seu relacionamento com o arquiteto em ódio e desconfiança. O confronto é iminente; a tragédia está próxima. O público, tenso, pressente que aquilo não vai acabar nada bem.
Naquela noite, no Jockey, mal sabia ele como estava certo: eis que, a cinco minutos do final, a rebimboca da parafuseta do projetor deu tilt, a luz se apagou e a exibição foi suspensa. Para um pequeno grupo de felizardos, porém, a experiência coletiva, absolutamente frustrante, revelou-se uma viagem inusitada: é que Jonas Bloch, que faz um dirigente da resistência, nos contou como o filme acaba.
Taí -- por melhor que seja o desfecho do diretor Toni Venturi, não vou ver "Cabra cega" de novo de jeito nenhum. Quero guardar para sempre o final personalizado do Jonas. Tenho certeza que, na minha vida, nunca mais haverá um filme como este.
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Rebimbocas da parafuseta à parte, o Vivo Open Air continua sendo, para mim, um dos eventos mais gostosos da cidade. Sei que é quase blasfêmia dizer isso perto de cinéfilos radicais, mas adoro cinema ao ar livre. Gosto da interação da tela com o céu, com as estrelas e com o que se vislumbra da paisagem; acho que estar ao mesmo tempo a céu aberto e assistindo a um filme é uma alegria dupla, uma espécie de bilhete premiado, ainda que sujeito a chuvas e trovoadas.Em noites de sorte grande, pode-se até brincar com um ou outro gatinho sobrevivente da matança promovida pelo Jockey Club; mas não, hoje não quero falar de tragédias quadrúpedes. Prefiro me dedicar ao lado leve e bom da vida, porque se a gente não fizer isso de vez em quando, morre de tristeza e desalento.
É claro que alguns filmes funcionam melhor do que outros ao ar livre. "Cabra cega", por exemplo, independentemente de chegar ou não ao fim, deve render muito mais num cinema fechado, onde a platéia pode, em tese, ser parte imaginária do apartamento, contribuindo para a sensação de claustrofobia que é parte tão fundamental da história.
Da mesma forma, a menos que seja exibido numa praia, vai ser difícil ver "Adrenalina pura" (Riding Giants) em circunstâncias mais apropriadas. Imaginem o melhor de todos os filmes de surfe, com as melhores tomadas de ondas de todos os tempos; e agora imaginem tudo isso ao ar livre! Espichada numa das espreguiçadeiras abaixo da tela imensa, eu tinha a nítida sensação de que ia tomar um caixote a qualquer momento.
As ondas gigantescas, no entanto, não são a maior atração deste documentário, ainda sem data para estrear no Rio. O título ambivalente em inglês, em que não se sabe ao certo se a idéia é surfar gigantes ou gigantes que surfam, dá uma pista ausente no título brasileiro: mais importantes do que as ondas arrepiantes ou do que a adrenalina que elas liberam são os homens que foram até lá, reverenciados pelo diretor Stacy Peralta como os semideuses que de fato são.
Há trechos de filmes caseiros de 50 anos excepcionalmente bem filmados e preservados, mostrando lendas vivas do surfe em ação, como o magnífico Greg Noll, ou o invencível Jeff Clark, que durante 15 anos surfou sozinho as ondas mais perigosas da Califórnia. O filme termina com Laird Hamilton, que reiventou o esporte com o auxílio de jet-skis, atravessando a mais espantosa parede de água que já se viu.
Ninguém precisa ser surfista ou ter noção do que é surfe para se emocionar com esses homens maravilhosos e suas pranchas voadoras.
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A ilustração de hoje é, como sempre, uma foto comum, tal como saiu da câmera. Nela, meus amigos Olívia e João Nuno se divertem num dos tubos de efeitos especiais montados no Open Air.Open Air... argh! O que há de errado com Ar Livre? Ou com Céu Aberto?
(O Globo, Segundo Caderno, 21.4.2005)
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