14.4.05





Arrastam o bicho à morte;
imaginam-se humanos


Uma notícia publicada na sexta-feira passada na "Zero Hora", de Porto Alegre, deixou os leitores gaúchos em estado de choque. Do jornal ela saltou para blogs, grupos de discussão e caixas postais. No sábado, já estava no Orkut. Na terça-feira à tarde, quando escrevi esta crônica, a comunidade "Prendam os assassinos da Preta" já tinha mais de 1.200 participantes -- todos igualmente perplexos, indignados, enfurecidos.

De acordo com a matéria da "Zero Hora", Preta, uma cadelinha de rua, era o xodó da vizinhança, em Pelotas. Tinha comida, carinho e tratamento de saúde. Teria casa também, não fosse o gosto natural pela liberdade; os filhotes que esperava, porém, já tinham endereço certo assim que nascessem. Michele Silva, veterinária e dona de pet shop, conseguira donos para a futura ninhada entre os 15 vizinhos que rachavam, entre si, as despesas do animal.

Durante o dia, Preta circulava tranqüila pelo bairro, onde era alimentada por moradores e estudantes da faculdade de odontologia. À noite, instalava-se junto à churrasqueira de um bar. Lá, segundo a repórter Caroline Torma, tinha o privilégio de comer carne assada separada especialmente para ela.

-- Era nossa amiga -- contou um morador para a jornalista. -- Não dávamos restos. Tirávamos o churrasco do espeto mesmo.

Na madrugada do dia 9 de março, porém, Preta encontrou-se com um tipo de gente diferente daquele ao qual estava habituada. Um grupo de jovens de boa aparência, que bebia no bar, e que decidiu se "divertir" com o dócil animal.

"Michele e alguns amigos, que estavam em outra mesa do bar, escutaram os gritos de Preta de longe", diz a reportagem da "Zero Hora". "Acharam que a cadela havia sido atropelada. De repente, viram os rapazes em dois veículos, e a amiga peluda sendo arrastada por uma corda pela rua."

-- Corremos para pegar o carro e saímos atrás -- conta Michele. -- De nada adiantaram os nossos apelos: eles andaram com ela por mais de cinco quadras.

Pedaços do corpo da cadelinha e dos filhotes que nasceriam em breve ficaram espalhados pelo asfalto. Os jovens de boa aparência sumiram. Durante quase um mês, Michele e os vizinhos reuniram provas para apresentar queixa à polícia -- que, aparentemente, já identificou um dos suspeitos e pretende ouvir outros três.

A levar em conta a indignação geral, é possível que, quando esta crônica estiver impressa, os assassinos já tenham sido identificados, e que seus familiares já estejam dando declarações à mídia dizendo que ótimas pessoas eles são.

Mas, ainda que a polícia faça o seu trabalho e que a Justiça seja rápida e firme, nada acontecerá a esses psicopatas. Embora maltratar e eventualmente matar animais seja crime, a pena é ridícula: de três meses a um ano de detenção. Com um detalhe -- a lei prevê substituição da pena de detenção por "restrição de direitos" quando esta for inferior a quatro anos e quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade dos condenados, bem como os motivos e as circunstâncias do crime, indicarem que a substituição seja suficiente à reprovação e à prevenção do crime.

Em outras palavras, o máximo que pode acontecer a esses canalhas, ainda que lhes seja aplicado todo o rigor da lei, é pagarem meia dúzia de cestas básicas e prestarem serviços à comunidade, e olhe lá. Não será de admirar se, daqui a alguns anos, movidos pela patologia e estimulados pela impunidade, saírem matando pessoas a esmo, como acabam de fazer os monstros da Baixada.

Legisladores que entendem que a vida de um animal vale tão pouco não percebem que, na maioria dos processos, o que está em julgamento não é a vítima, e sim o criminoso. Alguém capaz de matar um ser indefeso desta forma horripilante é capaz de tudo; é alguém inteiramente destituído de sentimentos, que já perdeu toda e qualquer empatia com o sofrimento dos outros.

Embora pareçam jovens de boa formação, os assassinos da Preta são seres tão monstruosos e deformados quanto os seus semelhantes de Brasília que incendiaram o índio pataxó ou os policiais que assassinaram os inocentes da Baixada. Não há possibilidade de redenção social para gente deste tipo, que envergonha a espécie humana.


(O Globo, Segundo Caderno, 14.4.2005)

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