7.11.01





Cecília

Hoje é o centenário de Cecília Meireles. Zanzando por aí, li, na Zel, uma idéia linda que a Maria Elisa teve: que cada blogueiro poste, hoje, um dos seus poemas. No Flabbergasted há, naturalmente, uma verdadeira Edição Especial Cecília, com poemas, links e fotos.

Lá encontrei este texto escrito pelo meu pai:

"Considero o lirismo de Cecília Meireles o mais elevado da moderna poesia de língua portuguesa. Nenhum outro poeta iguala o seu desprendimento, a sua fluidez, o seu poder transfigurador, a sua simplicidade e seu preciosismo, porque Cecília, só ela, se acerca da nossa poesia primitiva e do nosso lirismo espontâneo... A poesia de Cecília Meireles é uma das mais puras, belas e cálidas manifestações da literatura contemporânea." (Paulo Rónai)

E agora, aqui, na madrugada de um hotel em São Paulo, longe dos meus livros mas sempre conectada, penso como é vasta e maravilhosa esta rede em que de repente acho -- e republico -- um trecho que meu pai escreveu, provavelmente antes mesmo do meu nascimento. A enorme saudade despertada pelo encontro inesperado é, ao mesmo tempo, apaziguada pela viagem no tempo, pelos links que sigo e pelos poemas que leio.

Papai e Cecília Meireles traduziram juntos um dos meus livros favoritos, "Cartas a um jovem poeta e A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke". A amizade entre ambos não se restringia à literatura; papai e mamãe eram tão amigos de Cecília que, quando nasci, ela foi minha madrinha. Não tenho recordações muito nítidas dela, que morreu quando eu tinha 11 anos, mas me lembro claramente da sua beleza -- ou, melhor dizendo, da sua presença, daquilo que quase se poderia descrever como carisma, se não fosse um elemento mais sutil -- e, curiosamente, da sua voz, uma impressão que com certeza se fixou mais tarde, talvez de tanto ler e amar a sua poesia.

Numa daquelas voltas que o mundo dá, hoje o meu agente literário -- que eu não conhecia até o ano passado -- é Alexandre Teixeira, neto de Cecília e um dos principais organizadores das homenagens que vêm sendo prestadas, este ano, à memória de sua avó.

Quanto à homenagem deste blog fica, além do carinho, em três poemas fundamentais que sei de cor há muitos e muitos anos. Escolher um só foi, pura e simplesmente, impossível.



Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias
Não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
-- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-- mais nada.



Guitarra

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
-- no cabo flores abertas,
no gume, a medida exata.

Exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.



Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?



Em tempo: o já famoso retrato lá de cima foi feito por Arpad Szenés, húngaro como meu pai e amigo comum dele e de Cecília. Szenés era casado com a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva.

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