22.3.07

Scoop -- O grande furo

Esqueçam a metafísica;
o importante é rir

Num filme qualquer, quando alguém morre vai para o céu ou para o inferno, conforme o merecimento e a imaginação do diretor – normalmente presa a um teletransporte básico, quando não a ônibus voadores ou escadas rolantes. "Scoop -- O grande furo", porém, não é um filme qualquer, mas um ótimo Woody Allen. Assim, quando Joe Strombel, o melhor repórter investigativo inglês, vai desta para a melhor, nós o encontramos na barca de Caronte, numa deliciosa referência à mitologia grega.

Caronte, vocês sabem, era o barqueiro que cruzava o rio Styx, levando os falecidos para o Hades. O Styx marcava a fronteira entre o mundo cá de cima, dos vivos, e o lá de baixo, dos mortos. O trânsito era feito numa só mão, obviamente, ainda que alguns personagens da mitologia, como Hércules e Orfeu, tenham conseguido cruzar o sinistro rio de lá para cá.

Pois está o nosso Joe Strombel batendo papo com alguns colegas de travessia quando descobre a identidade de um serial killer que vem apavorando a Inglaterra. É o furo do século, mas... de que serve para um jornalista inconvenientemente morto?! Strombel, interpretado por Ian McShane -- o magnífico Al Swearengen da série "Deadwood" -- faz o que pode: atira-se ao Styx para tentar voltar ao outro lado.

É bem sucedido, ou quase: em vez de se rematerializar numa redação ou num bar ao lado de colegas safos, reaparece no show de um mágico de quinta, o Grande Splendini (Woody Allen), exatamente quando uma voluntária da platéia está fechada na caixa de onde supostamente desaparecerá. A "vítima" é Sondra (Scarlett Johansson), estudante de jornalismo americana com mais boa vontade do que preparo (ou talento) para a coisa.

Strombel não tem nem tempo, nem escolha. Antes de desaparecer, passa a Sondra o furo dos furos: o Assassino das Cartas de Tarô é Peter Lyman (Hugh Jackman), milionário, aristocrata, político em ascensão. A partir daí, Splendini e Sondra, dois americanos fora d´água em Londres, formam uma curiosa parceria para se aproximar de Lyman e descobrir a verdade.

Quem for ao cinema esperando uma obra-prima filosófica como "Match Point" talvez se desaponte; "Scoop" é, ao contrário do seu irmão mais sério, uma comédia ligeira, sem outra pretensão que a de fazer rir -- em nenhum lugar, porém, está escrito que "fazer rir" seja uma arte menor ou perca para as Grandes Questões da Humanidade.

Para isso, Woody Allen conta com dois trunfos imbatíveis, o seu fenomenal talento e a familiaridade que, ao longo dos anos, desenvolvemos com seu estilo. Splendini, que na vida real se chama Sid Waterman, é, como sempre, um nova-iorquino neurótico e pessimista. Seus diálogos com Sondra são uma troca constante de ótimas tiradas, sublinhadas pela canastrice da persona que representa: Sid não tem mais ilusões, sequer em relação à sua competência como mágico.

A Sondra de Scarlett Johansson é surpreendentemente convincente e divertida, até (e sobretudo) pelo bom senso de não tentar ser mais engraçada do que as suas falas.

O filme tem uns defeitos aqui e ali, mas nada que comprometa a história como um todo ou o genuíno prazer que sentimos no cinema ao assistir essa comédia tão inteligente. Sua única falha grave é não aproveitar mais o grande Ian McShane, que ainda conhecemos tão pouco.


(O Globo, Segundo Caderno, 22.3.2007)

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