29.3.07


O enterro de Chico Mendes

Não reparem não, mas ali à direita, fora de quadro, vai a cronista, com ar compungido


Eram 9h30, horário em que, ainda que esteja de pé, nunca estou inteiramente acordada; parada diante do armário, olhava desconsolada para as minhas roupas, procurando algo apropriado para ir a um enterro. Na vida real, qualquer roupa escura resolveria este tipo de emergência; mas, de acordo com as imagens da época, a única pessoa de preto havia sido a antropóloga Mary Allegretti. Eu precisava de uma roupa neutra, simples, sem nenhum sinal evidente do século XXI, para ir ao enterro de Chico Mendes em Xapuri, em dezembro de 1988.

Karl Marx dizia que a História se repete como farsa. Ele não conhecia o Brasil, onde a História já acontece como farsa -- mas, eventualmente, se repete como minissérie. Assim, com os óculos mais antigos que encontrei em casa, uma blusinha de bater, uma calça velha e desbotada e minhas fiéis Birkenstocks, que há décadas mantém o mesmo design, tomei o rumo do Projac onde, em algum canto, haveria uma irmã cenográfica da floresta que visitei ainda outro dia, e na qual, pela primeira vez, faria figuração em televisão.

Descobrir o Acre foi, como já escrevi aqui, uma experiência muito marcante. Fiquei apaixonada pelo estado, gostei demais dos acreanos e, nem preciso dizer, adoro a intrépida trupe que tão bem está contando a sua história. Ter a chance de aparecer numa minissérie com a qual fiquei tão envolvida emocionalmente foi um convite inesperado e simpático que, ainda por cima, me deu de presente umas dúvidas que nunca tinha tido antes, algumas com resposta e tudo.

* * *

Cheguei ao Projac junto com Zuenir e Mary Ventura e Elson Martins, meus colegas de estrelato. Para mim, que nunca havia estado lá, tudo era novidade, a começar pelo tamanho da coisa: o Projac é imenso. O refeitório, onde se misturam caras familiares de diversos programas e novelas, me lembrou aquelas cenas em que damas e cavalheiros medievais disputam o ketchup do cachorro-quente com astronautas, índios e caubóis nas cantinas de Hollywood. Mas foi em vão que fiquei esperando alguém aparecer com um modelinho mais bizarro. Devo estar vendo filmes demais.

Na caracterização passamos pelo crivo das figurinistas. O relógio do Zu foi substituído por um mais antigo. Depois deram um ar mais anos 80 aos cabelos da Mary e aos meus, que atravessamos aquela década espaventosa, sobrevivemos e achávamos que nunca mais levaríamos tais sustos diante do espelho. Antes de nos levarem para Xapuri, assistimos às últimas imagens de Chico Mendes em vida, numa missa na floresta, e, em seguida, a um video do seu enterro. Zu, que foi testemunha da História, ficou visivelmente abalado; até eu, que só acompanhei a saga de ler, fiquei emocionada.

Quando chegamos ao Acre do Projac, porém, topei com uma daquelas dúvidas inéditas de que falei antes: com que cara se segue um enterro falso? Ainda por cima, o enterro falso de um personagem real? Com uma cara bem compungida, ora essa. Mas isso não é um baita fingimento? Claro que é, Cora Rónai, mas o que seria das artes cênicas sem esse fingimento?! De modo que fiz a cara mais séria que pude e segui o caixão com passos contritos, me sentindo absolutamente canastra.

No caixão, aliás, ia a resposta a outra dúvida: como dar um peso convincente a um caixão vazio? No caso, foram usadas duas pequenas barras de concreto.

À volta do cortejo, jornalistas filmavam, gravavam e fotografavam. Mas eles eram coleguinhas cênicos, que usavam roupas e equipamento de época. Achei um paradoxo curioso o fato de nós, jornalistas, estarmos lá como atores, enquanto atores faziam jornalistas; tive vontade de orientar um ângulo de câmera que obviamente não flagraria coisa nenhuma e, quando um deles passou voado com a filmadora, fiquei imaginando que espécie de take maluco aquela pressa toda não produziria na vida real. Vício profissional. Imagina só quantas coisas eles não corrigiriam em mim!!!

A cena foi repetida algumas vezes, ora com o conjunto completo de atores e figurantes, ora com os atores, ora com os figurantes. Quanto mais cínica (e encabulada) eu ficava, mais os atores entravam no clima. Eles realmente conseguem viver o que representam, fato que para mim sempre foi assombroso, mas que, de agora em diante, passo a classificar na categoria dos milagres.

* * *

Não sei se é conjunção astral, mas ando encontrando o Acre por toda a parte! Essa semana mesmo descobri o CD de estréia de Chico Chagas, acreano talentosíssimo que mostra que há muito mais coisas na vida de um bom acordeão do que música folclórica. Em "E por falar em acordeão" (Rob Digital), ele passeia pelo jazz, pelo rock, pelo chorinho, pelo tango... O repertório, delicioso, vai de “Day tripper” (!) e "Por una cabeza" ao lindo "Chorando baixinho" e a "Rio Branco", do próprio Chico. Vale!

(O Globo, Segundo Caderno, 29.3.2007)

Um comentário:

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