"Sou roteirista e no momento escrevo um filme sobre Nise da Silveira, grande admiradora dos animais e de sua infinita capacidade de amar e perdoar. Acreditava tanto nisso que levou gatos e cães para as dependências do hospital psiquiátrico em que trabalhava, no Engenho de Dentro, nos anos 50. Ela tinha razão, pois muitos pacientes, ou "clientes", como preferia chamar, tiveram evidente melhora com a presença dos animais e de seu afeto incondicional. Mas, por mais estranho que seja, o afeto incomoda.
No caso de Nise, incomodou os médicos, enfermeiros e a direção do hospital, que viam na experiência pioneira da médica apenas uma maluquice que espalhava pulgas, sarna e mau cheiro. Os animais foram envenenados. Segundo Nise, foi o pior momento de sua (longa) vida.
Estava eu ontem à tarde escrevendo justamente essa cena terrível quando, como no filme "Mais estranho que a ficção", nosso amado cachorro, que minutos antes estava a meus pés, foi envenenado no quintal de casa. Pedaços de carne com chumbinho foram encontrados depois de sua morte fulminante. Soubemos ontem que um vizinho teve seus gatos assassinados da mesma maneira há menos de quatro meses.
Ao contrário dos cães e gatos de Nise, que "atrapalhavam" a vida no hospital (segundo seus oponentes, claro), nosso cão, um lindo pastor branco, não incomodava ninguém. Raramente latia e era tão manso que o chamávamos de Beijo. Mas isso também incomodou alguém na vizinhança, que provavelmente cansou de ver meus filhos correndo e brincando com ele. Era alegria demais. Foi covardia demais. Escondido pelo anonimato, nosso algoz atirou um pedaço de carne através da grade e acabou com a festa.
Minha filha Nina, de apenas cinco anos, dormiu chorando porque não quer morar perto de alguém tão malvado. Ela tem razão: alguém que comete algo tão bárbaro e inexplicável é capaz de fazer qualquer coisa.
É claro que a maldade não é coisa da minha vizinhança nem dos nossos tempos. Sempre existiu e sempre existirá, nos anos 50, hoje, daqui a mil anos -- pois somos humanos e o egoísmo faz parte de nós. Pobres de nós, que somos tão diferentes dos animais. Teremos que conviver para sempre com vizinhos covardes, balas perdidas, seqüestros-relâmpago?
Nosso Beijo, como escreveu um dia a atriz Liv Ulmmann se referindo à sua cadelinha, era uma emoção sobre quatro patas. Parece que no mundo não há espaço para um amor tão puro. Mas isso eu não tive coragem de dizer para a minha filha." (Maria Camargo)
27.3.07
Beijo Envenenado
Recebi ainda agora da Maria Camargo, filha da minha amiga Aspásia:
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