O Brasil possível
Cronista vai visitar fábrica, mas se apaixona por escolaSer jornalista de tecnologia é estar mais do que acostumada a surpresas; é, na verdade, esperá-las como parte integrante e fundamental da rotina. Ainda assim, há surpresas e surpresas, e posso, honestamente, dizer que, nesses anos todos, nada me preparou para o que encontrei na última segunda-feira.
Imaginem uma área de quase 13 mil metros quadrados, com instalações impecáveis e equipamentos de última geração; um restaurante amplo e limpo, laboratórios técnicos, computadores à vontade, mesas, bancadas e cadeiras no melhor estado de conservação; jardins bem cuidados e, por toda parte, uma profusão de recipientes para reciclagem de lixo. Seria um ambiente familiar para mim se fizesse parte de um dos tantos laboratórios de pesquisa científica que já visitei no exterior; mas é uma escola técnica de nível médio, localizada, ainda por cima, no distrito industrial de Manaus. Mais: 70% dos seus alunos vêm do ensino público, depois de disputar um concurso com cerca de 25 candidatos por vaga.
Melhor ainda do que ver o conforto e a excelência das instalações e dos equipamentos, das quadras esportivas e da biblioteca, foi observar os meninos e meninas tão obviamente orgulhosos da sua escola, e perceber a paixão da equipe de professores que fez da Fundação Nokia de Ensino a bi-campeã do Enem no estado do Amazonas, e merecida detentora de uma coleção de troféus obtidos em campeonatos regionais e nacionais de química, matemática, física, informática e uma penca de esportes, inclusive xadrez.
No ano retrasado, por exemplo, uma das suas turmas levou o cobiçado primeiro lugar da Feira de Ciências e Engenharia da USP, que a diretora pedagógica Ana Rita Arruda exibe com comovente entusiasmo. É um sentimento contagioso: depois de percorrer com ela e com seus colegas Fabíola Bazi e Gino Pieri esta ilhota de excelência e oportunidade num país onde tudo parece fora de esquadro, eu estava à beira das lágrimas.
A mesma emoção se repetiu à noite, de volta ao hotel, ao ler, no meu blog, o depoimento do Beto, ex-aluno da instituição, que conheço de outros carnavais e de outro blog, o seu Rabo de Arraia. O lado amargo da história é que, por mais que tenha me empolgado ao conhecer este pedacinho de Brasil que dá tão certo, simplesmente não me conformo ao pensar quantas escolas como esta extraordinária Fundação a corrupção e o descaso não roubam das nossas crianças.
Fala, Beto:
"Lembro ainda hoje da frase de minha prima, que morava em Marechal Hermes, no Rio, enquanto caminhávamos rumo à padaria pisando em folhas secas, e eu descrevia a Fundação Nokia de Ensino.
-- Ar-condicionado, TV e vídeo cassete em todas as salas? Ônibus próprio na ida e na volta para casa? Três refeições por dia e aula o dia inteiro, com laboratórios totalmente equipados? E tudo isso de graça?
As perguntas foram seguidas de uma risadinha de desdém, como se estivesse ao lado do primo mais mentiroso do mundo. A minha sensação era de mais estranhamento ainda. Acostumado com o padrão da escola, não entendia na época porque uma escola de Manaus, cidade tão à margem, causaria tal "inveja" em alguém do Rio, uma das capitais mais importantes do país. "Ela estuda em escola pública, deve ser por isso", pensei.
Mas a desconfiança quanto à qualidade da escola só acabou dois anos mais tarde, quando, ao ingressar na Universidade Federal, vi que metade da sala vinha da mesma escola que eu, da mesma Fundação Nokia.
A dedicação semi-integral tornava a experiência tão intensa e puxada, que não havia como um aluno formar-se lá e não ser aprovado de primeira nas melhores faculdades. Acordávamos todos os dias antes do amanhecer, às 5 da manhã, para pegar a rota que passava nos bairros, e saíamos às 5 da tarde.
Ninguém esquece as listas de exercício de Física de 100 questões, que valiam apenas 1 ponto na prova, e que, naquele tempo, escrevíamos em papel almaço (!) pra entregar.
O mesmo professor Gino Pieri, fotografado pela Cora e hoje compondo a Diretoria da FNE, me deu aula de Telefonia. Lembro que fui para o quarto bimestre precisando de dez para passar... e fui o único dez da sala! Ainda me recordo da coceira da grama do campo de futebol, onde deitei na hora do almoço para estudar, antes da prova.
Estes momentos não são lembranças aleatórias que trago à tona. Marcam. A moçada que cuida do futuro da nossa gente mexe com vidas. E, se depender da energia que recebem dos ex-alunos, estão no meio de uma aura de muita luz.
Não conheço viva alma que não sinta falta das partidas de tênis (sim tínhamos quadra de tênis!), desafios de xadrez ou vôlei após o almoço, das cumplicidades nos laboratórios, nesse universo que consumia em nossas adolescências mais tempo diário do que as próprias famílias.
Durante o discurso de Olli-Pekka na festa da Nokia, eu percebia e entendia, ao longe, os pulinhos contidos de felicidade da diretora pedagógica Ana Rita Arruda, quando ele mencionava o sucesso da FNE no exame do ENEM, ficando 20 pontos acima da média nacional.
Por trás daquela alegria não estavam apenas números ou estatísticas, estavam vidas que este grupo pedagógico alavancou e vem alavancando com profissionalismo, qualidade e dedicação diária.
Da escola sai anualmente um grupo de profissionais competentes, que preenchem hoje posições estratégicas na sociedade, e que devem, como mínima prova de gratidão, prestar homenagem a quem ainda acredita e dedica um tempo valioso da sua vida ao investimento mais rentável que se conhece: a educação."
(O Globo, Segundo Caderno, 8.3.2006)
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