26.9.05



Entre céu e inferno

Durante essas curtas férias que tirei com a Bia, consegui, pela primeira vez em muitos anos, me desligar completamente do mundo. Não vi televisão, não surfei pela internet.BR e, por causa das línguas em que estava mergulhada, mal e mal lia as manchetes dos jornais.

Tudo o que me interessava era o boletim meteorológico e o próximo passo que daríamos: para onde, como, em que condições. Em geral faço melhor o dever de casa, mas fomos tão felizes que até os poucos contratempos que enfrentamos foram divertidos, como o achaque na Eslováquia e o hotel pavoroso em Praga.

O Brasil ficou muito longe, mesmo na primeira etapa da viagem, quando ainda estava mergulhada nas telas de plasma e nos eletrodomésticos wi-fi da Philips. Às vezes vocês me davam uma notícia ou outra aqui nos comentários, mas consegui a proeza de passar duas semanas sem saber o que estava acontecendo por aqui. Era como se eu estivesse numa espécie de bolha inatingível, à prova de CPIs, mensalões, políticos corruptos.

A bolha mágica foi estourada com a notícia da morte do Cesar, o porteiro noturno de quem a Bia e eu gostávamos muito. A tristeza nos trouxe a consciência do contraste, e nos jogou na cara, como um soco, a realidade que vivemos nesta terra de ninguém em que se transformou o Rio de Janeiro.

Muitas vezes, ao longo dos anos, assistindo cenas de guerra pela televisão, eu me espantava com as pessoas que insistiam em continuar no inferno. Não aquelas pobres pessoas destituídas, claro, que nascem e morrem sem qualquer poder de escolha; mas as de algumas posses, que em tese poderiam vender casa e carro, por exemplo, e recomeçar a vida num canto mais sossegado.

Enquanto eu me perguntava como alguém podia continuar a viver em Beirute ou em Jerusalém, a minha própria cidade ia se encarregando da resposta. Salvo em guerras declaradas, o cerco da violência é sutil e gradual. Um dia é um assalto aqui, no outro uma morte ali. Mal reparamos quando começamos a evitar as linhas de ônibus mais perigosas, quando deixamos de sair a pé à noite, quando a uma da manhã já mal se vê gente em pontos onde, antigamente, esta era a hora em que a festa começava. O som dos tiroteios vai se integrando à cacofonia urbana, e passamos a achar normal o barulho dos fuzis e metralhadoras que vem dos morros.

Como é que alguém pode viver numa cidade odiada pelo presidente, abandonada pelos governadores e esquecida pelo prefeito? Como é que alguém pode viver numa cidade onde não existe mais segurança alguma, ou vestígios de qualquer coisa semelhante a ordem? Como é que se pode viver numa cidade tomada pela bandidagem e pelas ervas daninhas, suja e esburacada, cheia de mendigos, assaltantes e menores de rua que metem medo até na polícia? Como é que se pode viver numa cidade onde a polícia federal -- a polícia federal! -- é roubada diante de todos?!

Por que não vamos embora deste inferno para um lugar decente, onde se pode viver em paz, andar pelas ruas a qualquer hora e usar transporte coletivo sem risco de vida? Por que nos sujeitamos, de livre e espontânea vontade, ao descaso e ao cinismo das autoridades, à angústia, à violência?

Passei duas semanas na Europa vivendo como, em tese, deveriam viver todas as pessoas do planeta, andando pelas ruas sem medo ou desconfiança. Pude usar minhas câmeras e celulares, andei em bicicletas maravilhosas que jamais sonharia ter aqui, saí com meu relógio de estimação sem receio de que o levassem na primeira esquina.

Vivi duas semanas feito gente e achei muito bom.

O problema é que não vivi na minha língua, não vivi na minha cultura, não vivi na minha querência. Ser turista é ótimo, mas ser estrangeiro não é.

O Rio nunca esteve tão mal, tão triste e tão desamparado; nunca estivemos tão por baixo, tão submissos e acabrunhados. Mas a geografia desta cidade está indelevelmente gravada no meu DNA, e a conversa das ruas é a trilha sonora da minha vida. Para não falar na familiaridade com a beleza, este raro privilégio que tenho só pelo acaso de ter nascido aqui.

Há gente que vem de todos os lugares para ver, por alto, o que eu conheço a fundo, o que é meu e o que eu vejo e verei todos os dias -- até que um pivete me mate por uma bobagem, a polícia me acerte por engano ou uma bala perdida me encontre, só assim.

Hoje eu entendo quem morava em Beirute, quem mora em Jerusalém, quem não sai de Bagdá.

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