27.5.04




Todo mundo é igual
para a democracia americana

Ou seja: ninguém é inocente, e não há viajante que
mereça consideração ou respeito



Historinha de viagem: um casal chegou a Nova York e foi, prontamente, detido na alfândega. Marido e mulher foram conduzidos a uma sala de interrogatório, onde informaram ao marido que existia uma ordem de prisão contra ele. Motivo? Uma suposta dívida contraída no Qatar, quatro anos antes.

— Eu não tinha noção do que se tratava — diz ele. — Me puseram algemas nos pés e nas mãos, e um bloco de madeira que ia do pescoço à cintura. Minha mulher, aterrorizada, foi obrigada a deixar o aeroporto.

Durante as 20 horas seguintes, ele foi mantido numa cela com outros sete viajantes, sem água ou comida. Quando alguém se levantava para esticar as pernas, era insultado pelos guardas, aos brados, até que se sentasse novamente. No dia seguinte, mandaram nosso viajante de volta para casa, sem qualquer explicação ou pedido de desculpas das autoridades.

Mais um cucaracha perdido lá em cima? Nada disso. O turista era inglês, e diretor financeiro de uma grande empresa — o que prova o caráter absolutamente democrático dos Estados Unidos. Lá, visitantes de todas as partes do mundo são tratados com a mesma boçalidade, e correm os mesmíssimos riscos nas aduanas paranóicas.

Encontrei este edificante relato na capa do caderno de viagem do “Sunday Times”. A reportagem, intitulada “Caiam fora!”, recomenda aos leitores esquecerem os EUA como destino de férias. O subtítulo é revelador: “Filas compridas, pavios curtos e possibilidade de encarceramento: viajar para os Estados Unidos, que já não é moleza, pode ficar pior”. E olhem que eles falam a mesma língua, são lourinhos de olho azul e têm aquele sotaque que os americanos associam a respeitáveis diretores de escola ou galãs apalermados.

O que vai ficar pior para os ingleses, a partir de setembro, é o que já está péssimo para nós: preencher formulários intrusivos, tirar foto e deixar digitais na entrada.

Para Matt Rudd, autor da reportagem, o problema é que Bush se confundiu com as palavras “turistas” e “terroristas” e, na dúvida, mandou detonar todo mundo. Ele cita o secretário de Estado Colin Powell que, há cerca de um mês, teria feito uma curiosa declaração:

— Há gente que diz que nós deveríamos erguer a ponte levadiça e não deixar mais entrar nenhum visitante estrangeiro. Essa gente está errada. Um ato assim daria vitória aos terroristas, pois nos faria trair nossos mais caros princípios. Para o próprio bem do país, e porque temos tanto a oferecer, devemos manter as portas abertas para o mundo.

O secretário, obviamente, não está informado do que acontece na portaria — onde, a cada dia, alguém instala um novo ferrolho. Quanto aos terroristas, Colin Powell que me desculpe, mas eles já ganharam a guerra há tempos — mais precisamente, desde o momento em que os EUA determinaram que todas as tesourinhas de unha fossem confiscadas no embarque, e que todas as facas a bordo fossem de plástico. Um país que tem medo de tesourinhas de unha e de facas de avião — que, por tradição, jamais cortaram coisa alguma — é um país derrotado.

Para mim, a faca de plástico é o emblema de uma fraqueza moral constrangedora. Cada vez que como uma refeição a bordo, ela me lembra Osama Bin Laden. Juro. É como se o retrato dele estivesse estampado na louça ou nos guardanapos de papel. Não consigo me acostumar com precaução tão tola, tão primária; arma por arma, um bom garfo pode fazer muito mais estrago do que as facas cegas, mas dignas, dos velhos tempos. Além do que, basta um mínimo de imaginação para ver quantas armas em potencial existem em qualquer cabine.

Imagino a alegria perversa que não sentem os terroristas ao ver as filas gigantescas e as revistas bizarras dos aeroportos americanos, com todas as velhinhas tirando obedientemente os sapatos. Receber a bandeja com todos os talheres de metal, à exceção da faquinha safada, deve ser o equivalente, para qualquer um deles, a receber uma condecoração de honra ao mérito.

O fato é que este tipo de “medida de segurança” desmoraliza qualquer trabalho sério que esteja sendo feito paralelamente — sobretudo quando associado ao questionário para a obtenção de visto para os EUA. Ou alguém acredita que um terrorista de verdade vai mesmo responder se “possui habilidade ou treinamento específico, incluindo armas de fogo, explosivos, experiências nucleares, biológicas ou químicas”? Ou vai listar, bonitinho, “todos os países em que esteve nos últimos dez anos” — fornecendo data da visita?!

Sinceramente? Nem gosto de pensar no trabalho que vai ter o presidente Kerry para desfazer a imagem repelente e grotesca do país que, tão meticulosamente, vem sendo construída pelo seu antecessor.

* * *

Entro de férias na semana que vem. Vou visitar uns países que, até onde eu sei, ainda gostam de viajantes, e os recebem de braços abertos. Conto tudo na volta; até lá, mando notícias pelo blog. Fiquem bem!


(O Globo, Segundo Caderno, 27.5.2004)

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