11.3.04



Um dia, uma noite


Na segunda-feira passada, o Fotolog, que é uma espécie de gigantesco álbum internacional de figurinhas on-line, estava uma festa. Havia homenagens a mulheres e à mulher por toda a parte; era praticamente impossível navegar sem esbarrar num poema, numa foto especial, num recado inspirado.

Muitas pessoas escreveram coisas lindas para mim, e eu mesma, para não desapontá-las, cumprimentei as amigas que me pareceram mais empolgadas com a data. Mas a verdade é que passei o dia na encolha, morrendo de medo que algum conhecido viesse me parabenizar pessoalmente, ou que algum dos lugares que freqüento me oferecesse a rosa protocolar. Acontece que abomino o Dia Internacional da Mulher.

Fica até chato dizer isso depois de ter recebido tantas mensagens carinhosas, que agradeço de coração aos amigos que não podiam adivinhar minha implicância. O diabo é que acho extremamente cabotino, para não dizer constrangedor, receber os parabéns por algo que não é mérito meu. Nasci assim. Estou perfeitamente contente por ser mulher e, provavelmente, estaria igualmente contente em ser homem (ou gato, ou capivara), se a genética, os fados, qualquer ocasionalidade, tivessem determinado assim. Tenho plena consciência de que faço parte de uma classe privilegiada, a que boa parte das mulheres do mundo não pertence, que pode se dar ao luxo de gostar de ser o que é. Mas isso me parece ainda menos causa para comemoração.

Não consigo deixar de ver por trás dessa data um grande farisaísmo (talvez justificado depois de tantos séculos de opressão), um paternalismo condescendente, que se congratula pela boa ação de um dia, liberando-se com isso de maiores obrigações no resto do ano. Para não falar no consumismo dirigido que já nos dá a obrigação de comemorar comercialmente dias das crianças, das mães, dos pais, dos mestres e dos gêmeos siameses.

Hoje a PM (!) e os postos de gasolina distribuíram flores. Amanhã pais, maridos e irmãos que não voltarem para casa com os devidos presentes serão considerados machistas e até criaturas desprovidas do sentido básico da família. Que é, naturalmente, gastar.

Desculpem, mas não me façam parte da presepada. Incluam-me fora dessa. Quero viver em paz com os meus semelhantes, todas e todos, 365 dias por ano, dentro do saudável princípio de que gentileza gera gentileza, assim como solidariedade traz solidariedade: sem hora marcada ou anúncio institucional.

* * *

Esse mau humor todo bateu na segunda; domingo, porém, foi outra história. Peguei minha câmera e lá fomos, as duas, para o Nokia Trends, a megamuvuca que levou aquela multidão ao Aterro. O som de Fatboy Slim não chega a ser meu gênero musical favorito, mas o Rio em estado de graça é uma coisa linda de viver, sobretudo depois de semana tão traumática. Acreditem: foi comovente ver aquelas 178.423 pessoas (contei!) dançando felizes, sem maiores confusões, aproveitando o som, o ar, o momento e a lua cheia, muito cheia. No mar, dezenas de barcos iluminados; lá atrás, o Pão de Açúcar de sempre. Bem...

* * *

Bem. A violência já ultrapassou as previsões mais pessimistas, o desgoverno é geral, a segurança no estado é uma piada de mau gosto; mas, quando menos se espera, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ainda consegue se erguer e se mostrar em toda a sua glória. A despeito do inepto casal de governadores, que nunca entendeu este Rio; do prefeito, que continua achando que nos engana com os seus Jogos Pan-Americanos; e mesmo do governo federal, este ingrato, que não consegue esconder que nos detesta, não há, no mundo, cidade onde se possa ver tanta beleza, embalada em tão alto-astral.

Cidade tão mulher.

* * *

Há muito tempo eu não me identificava tanto com um livro quanto com “O efeito sanfona — confissões de um dependente químico de comida”, de Ricardo Freire. Um trechinho:

“A mensalidade da academia é o imposto indireto mais injusto que existe. Você — um dependente químico de comida sério e pagador de impostos, que trabalha duro e movimenta a economia, sustentando um sem-número de fabricantes de salgadinhos, guloseimas e alimentos dietéticos — é obrigado a contribuir com uma parte significativa do seu salário para uma entidade na qual você não acredita. Pior ainda: que lhe causa repulsa. Antigamente era o dízimo da igreja; hoje é a mensalidade da academia.”

O cara é ótimo, e passou por tudo. Informa a orelha (onde, aliás, ele nem parece tão gordinho assim) que “Ricardo já fez incontáveis regimes, internou-se quatro vezes em spas e foi proprietário de três esteiras elétricas pouquíssimo usadas.”

Ele é um dos nossos! Se você também se reconheceu neste perfil, não deixe de ler o livro, melhor do que “A dieta de South Beach” e “A revolucionária dieta do Dr. Atkins” juntos. Você não vai emagrecer nada, mas pelo menos vai rir muito.


(O Globo, 11.3.2004)

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