18.3.04





Zeca Pagodinho, a Luma da semana

O que seria das conversas de botequim sem as
pequenas traições da vida cotidiana?


Não sei se um atentado a uma marca de cerveja merece tanto auê, mas uma coisa é certa: ninguém agüentava mais falar na Luma! Com mais uma semana de papo sobre a gravidez da Luma, o casamento da Luma, a coleira da Luma, a calcinha da Luma, o divórcio da Luma, os bilhões da Luma, o bombeiro da Luma ou o lume da Luma, corríamos todos o risco de ficarmos definitivamente sem assunto e, horror!, termos que discutir na mesa do boteco temas como a venda da Embratel, o caso Gtech, a CPI dos bingos, a política econômica ou a psiquê do Palocci. O que seria de nós sem a traição de Zeca Pagodinho?!

Graças à providencial guerra das cervejas, pudemos enfim virar o disco e continuar, felizes, a jogar conversa fora sobre assuntos aparentemente sem importância. O que é — sem brincadeira — extremamente importante. É mais fácil e menos prejudicial à saúde e às amizades discutir ética, traição e valores morais de modo geral através da atitude de uma Luma ou de um Zeca Pagodinho do que, digamos, através de um governo do PT, eleito num dia para renovar a cena nacional e, no dia seguinte, já entregue, sem traumas, a Sarneys, ACMs e outras figuras que, em tese, julgávamos varridas pelas urnas.

Para mim, a única coisa triste nisso tudo foi o papelão do Zeca Pagodinho que, até ontem, me parecia um sujeito legal e confiável. Que o Nizan Guanaes tenha dado um golpe contra a Fischer, em particular, e contra a propaganda brasileira, como um todo, sem problema — exceto talvez para uns poucos publicitários do bem. A gente sempre intuiu que “propaganda enganosa” é praticamente um pleonasmo, e que bom na área é quem melhor engana, mente e trapaceia; agora a gente sabe. Mas o Zeca Pagodinho?! Logo ele?! Ainda se fosse um Belo ou um Alexandre Pires...

Se o Zeca Pagodinho só bebia Brahma não devia ter aceitado fazer propaganda da Nova Schin; mas, uma vez que aceitou, que cumprisse o contrato. Se não aguentava beber Nova Schin, que rompesse o contrato; mas avisasse a quem o contratou, de preferência dando um tempinho nos comerciais de cerveja. Propaganda ou não propaganda (quer dizer, mentira ou não mentira, é assim?), era a cara dele que estava lá e a palavra dele que estava empenhada, ainda que não dissesse nada. Não por questão de cerveja, não — mas por questão de atitude.

Que pena.

* * *

Um dos livros mais bonitos que li nos últimos tempos foi “O Deus das pequenas coisas”, de Arundhati Roy. É uma jóia rara de observação, linguagem e sentimento, capaz de revelar a perversidade do sistema de castas indiano de forma infinitamente mais eloqüente do que toda uma biblioteca de política e sociologia. Afinal, este é o gênio da arte: traduzir a realidade, tornando visível o que não se conhecia ou, eventualmente, se ignorava; e transformar este conhecimento numa emoção que altera, para sempre, a percepção de quem a sentiu. Virei fã da autora, que manifesta a mesma angústia pelas divisões sociais em todas as áreas em que atua, seja como cineasta, arquiteta ou ativista política.

Pois na última terça-feira assisti a uma entrevista com ela na Globo News. É exatamente como eu a imaginava: delicada, atenta e de uma ferocidade mansa interessante e verdadeira. Arundhati Roy esteve uma vez no Brasil, durante o Fórum Social, e visitou Porto Alegre e São Paulo. Quando a repórter Elizabeth Carvalho perguntou o que mais a impressionou por aqui, ela observou que não chegou a ver muito do país — mas acertou na mosca da desigualdade social, que a chocou pela, palavras suas, “extrema brutalidade”. Acertou em cheio também na expressão, “extrema brutalidade”, como marca registrada não só do nosso cotidiano, mas, também e sobretudo, da nossa elite de miliardários que se isola do mundo real, completamente insensível à miséria à sua volta.

E olhem que Arundhati Roy nem viu o programa do Jô em que, dia desses, meia dúzia de colunáveis paulistas falavam, com indisfarçável orgulho, da quantidade de seguranças que haviam trazido ao estúdio. Que gente, sinceramente! Deviam ser condenados, todos, ao Castelo de Caras perpétuo.

* * *

Outro livro que me causou uma sensação de encanto e de descoberta semelhante à de “O Deus das pequenas coisas” foi “Balzac e a costureirinha chinesa”, de Dai Sijie. Nele, a revolução cultural chinesa é ao mesmo tempo pano de fundo e fio condutor da história de dois meninos de classe média em pleno processo de “reeducação revolucionária” nas mãos de camponeses analfabetos.

O que os salva da miséria intelectual mais profunda é o cinema, meia dúzia de livros proibidos e o amor pela linda filha do alfaiate da aldeia. O romance virou filme no ano passado, dirigido pelo autor, e chega ao Brasil em princípios de abril, junto com o próprio Dai Sijie. Estou muito curiosa.


(O Globo, Segundo Caderno, 18.3.2004)

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