4.3.04





Entre Luma e o FMI,
você fica com quem?

Cronista é surpreendida por manchete insólita e
descobre iceberg filosófico na primeira página



Eu estava tomando café da manhã com os gatos quando vi a notícia da não-gravidez da Luma no alto da primeira página. Levei um susto.

— Gente, o jornal surtou... Teve um caso agudo de Síndrome de Contigo!

Os gatos, que estavam ocupados com outras coisas, mal levantaram os olhos. Obviamente não estavam interessados em discutir nem os problemas da Luma, nem a primeira página do Globo; e eu tive que me reconciliar com o fato sozinha.

Como, uma não-notícia no alto da primeira página?! O pedaço mais importante do jornal dedicado a uma fofoca?! Onde é que nós estamos?! E onde é que isso vai parar?!

Mais tarde, na hora do jantar, encontrei amigos que estavam muito ouriçados com o caso. Luma, o casamento de Luma, a gravidez de Luma, a mentira de Luma: todo mundo estava adorando a história, que se transformou num dos grandes temas da noite e — hoje a gente já sabe — um dos principais assuntos dos jornais do dia seguinte.

Quando voltei para casa, peguei o jornal novamente e estudei as outras notícias: “Presidente do Haiti renuncia e foge”, “Governo culpa Bangu III por ataque à PM”, “FMI acena com a flexibilização de regras de acordo com o Brasil”, “Bom jogo, mesmo sem gols”, “Tubarão mata um banhista no Recife”, “Caso Gtech: CEF acusa funcionários”. OK. Era um dia de não-notícias. E era claro porque não sou eu quem faz a primeira página.

* * *

Fiquei pensando no que me levou a estranhar tanto a Luma como manchete, e cheguei à conclusão de que a questão, verdadeiro iceberg filosófico, está menos na Luma do que no papel da imprensa — e, por tabela, no inconsciente coletivo do país. O que se quer de um jornal, informação ou diversão? É possível ter informação e diversão ao mesmo tempo, ou a diversão atrapalha a informação? A informação deve receber, sempre, um tratamento melhor do que a diversão? Em suma: o jornal tem que estar sempre de terno e gravata, ou pode usar bermuda de vez em quando?

* * *

Eu estava brincando com essas perguntas, que dão panos pras mangas, quando descobri o que havia me incomodado na manchete: confundir informação com diversão. Luma de Oliveira, ainda que tenha nome, endereço e telefone, não existe. Ela é uma figura de ficção tão inconsistente quanto, digamos, a Maria Clara Diniz, e o que diz ou deixa de dizer é tão irrelevante como informação — ou tão interessante como diversão — quanto o que diz ou deixa de dizer a Maria Clara.

Se está grávida ou não está, se o casamento está ou não ameaçado, tanto faz; para todos os efeitos, a vida de Luma é uma espécie de Big Brother que a gente acompanha em capítulos esparsos, uma capa da Playboy aqui, uma reportagem de Caras ali. Há capítulos sem graça e há capítulos especiais, geralmente divulgados durante o carnaval, para manter aceso o interesse popular pela trama. O texto, naturalmente muito menos criativo do que o do Gilberto Braga, é ditado pelo advogado ou pelo assessor de imprensa da ocasião, e não tem, necessariamente, qualquer relação com a realidade.

O grande segredo do “produto”, digamos assim, é que, como a Luma é representada por si mesma, a gente às vezes se distrai e leva a sério, confundindo episódios com fatos.

* * *

É impressionante como o Rio está mal cuidado — e, pior, como a gente vai se acostumando com isso! Para qualquer lado que se olhe, a grama está cheia de mato, o concreto está todo quebrado, o asfalto é uma colcha de retalhos; onde há pedras portuguesas as falhas são um risco permanente. Em Ipanema, as cores no chão dos cruzamentos, que seriam alegres se estivessem bem conservadas, viraram um ruído no ambiente, um elemento a mais na poluição geral; no Jardim de Allah, há tanta sujeira no canal que as garças ficam em pé na água. E tome grade quebrada, jardins sujos e fradinhos horrendos, espalhados a torto e a direito, sem nenhum critério.

A violência não se faz só de arrastões, de bandidos desinibidos e de polícia ineficaz, mas também de agressões visuais e ambientais. O descaso das autoridades pela cidade, cada vez mais evidente, não é apenas uma agressão contínua a todos nós, mas também a garantia de que as coisas vão ficar cada vez piores: as gerações que estão crescendo em meio a este caos não têm como adivinhar a paz da beleza, aquele Rio de amor que se perdeu.

* * *

A delegação brasileira junto à ONU vai propor uma resolução que estabelece a discriminação por orientação sexual como violação dos direitos humanos. Não é nada, não é nada, já é alguma coisa. E é, sobretudo, uma postura muito mais civilizada e esclarecida do que a patética cartada de Bush, disposto a provar que é a vanguarda do atraso.

(O Globo, Segundo Caderno, 4.3.2004)

Update: O Rafael Barbastefano fez uma observação muito importante nos comentários:
"Cora, um comentário sobre a iniciativa brasileira na ONU. Seria louvável acabar com a discriminação contra homossexuais, entretanto falar em "discriminação por orientação sexual" é vago e perigoso. O Brasil, por exemplo, não só realiza discriminação por orientação sexual com determinadas pessoas, as prende e a sociedade concorda com isso. Um exibicionista ou um pedófilo podem ser considerados indivíduos com um "orientação sexual heterodoxa", entretanto não só são discriminados mas presos, quando realizam atos de atentado ao pudor ou pedofilia. Dizer que seria uma violação dos direitos humanos a discriminação por orientação sexual é equivalente a concordar com práticas como pedofilia e exibicionismo, que não seriam mais crimes." (Rafael Barbastefano)

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