Costumo escrever a crônica entre segunda e terça. Na semana passada, às oito da noite da terça, eu ainda não havia conseguido uma única linha. Tinha começado e recomeçado, experimentado um assunto e outro, mas faltava liga a tudo. Grande problema! O Segundo Caderno de quinta-feira é fechado relativamente cedo na quarta. Como sou um animal noturno, ter essa manhã à disposição significa apenas que posso entrar pela madrugada à vontade, vale dizer uma terça espichada.
Andei pela casa, brinquei um pouco com o Toró (que, como todo filhote, está sempre disposto a correr atrás de umas bolinhas de papel) e me deitei no chão da sala, olhando para o teto – lugar de onde, curiosamente, sempre vem alguma inspiração.
Dessa vez, nada.
Fui à geladeira, pesquei um cachinho de uva, voltei para o escritório e, em absoluto desespero de causa, resolvi, pura e simplesmente, descrever o espaço onde me encontrava emocionalmente: o fundo do poço.
A crônica foi escrita de forma singela, mais ou menos como, na escola, escrevíamos as redações com tema dado pela professora, como “Minhas férias” ou “Um dia de sol”. Eu nunca poderia imaginar a sua repercussão, muito menos a quantidade de emails cheios de preocupação e carinho que recebi de leitores que, embora não conheça, são meus amigos.
Agradeço a todos de coração. Tenho esperança de, um dia, conseguir responder a cada um, pessoalmente -- mas confesso, desde já, que há um certo otimismo nessa esperança. Assim peço que, por favor, não imaginem que não dei valor às suas palavras se por acaso não receberem resposta; saibam que, ao contrário, elas foram da maior importância, e me deram alento num momento muito difícil da vida.
* * *
Entre tantos emails e mensagens no Twitter, no Facebook e no blog (só lá foram 170 comentários), fiquei espantada ao descobrir como tenho vizinhos e colegas de profundeza. Como constatou a Monca, quando os comentários do blog andavam mais ou menos pela metade:“Mon Dieu! Olhando daqui, o fundo do poço parece um continente superpovoado.”
Também fiquei com essa impressão; e, no fim da semana, depois de ler tantos emails aflitos e confessionais, acabei mesmo com a certeza de que ir ao fundo do poço é muito mais freqüente do que se imagina. Se não percebemos isso no dia a dia é que quem está no fundo do poço aprende a disfarçar.
A tristeza, ao contrário da depressão, é uma emoção relativamente simples de explicar e de entender. É o avesso da alegria, e em geral suas causas são compreensíveis por todos, por triviais que sejam. Tristeza se cura com uma noite bem dormida, com um ombro amigo, com meia dúzia de chopes, com uma ida ao shopping.
O fundo do poço, porém, é mais complicado. Quem está lá (aqui) embaixo enfrenta alguns preconceitos, a começar por uma auto cobrança cruel, em que a gente se culpa de não estar “reagindo”, como tanto recomendam os amigos.
É preciso parar tudo para por os pingos nos ii: alguém pode “reagir” contra uma perna quebrada? Não, claro que não. Pode-se tratar da perna quebrada – mas é mais fácil cuidar de uma perna quebrada que está bem à vista de todos do que da descida ao fundo de um poço que ninguém vê.
* * *
Do outro lado da caixa postal, aquele que não foi ao fundo do poço, as coisas também não andam nada boas. Acompanho a luta constante dos protetores e das ONGs de defesa animal para educar a população nas suas relações com os bichos. É uma dura batalha contra a maldade, o preconceito e a idéia de que bichos são objetos que podem ser abandonados de qualquer jeito, em qualquer lugar.Pois na segunda, essa luta tão digna sofreu um grave revés. Numa cena da novela “Insensato coração”, a personagem da Camila Pitanga vê um gatinho lindo em cima do capô do carro e pede à amiga que o pegue, porque ela está grávida:
-- Eu não posso pegar não, pega para mim, Claudinha?
-- Você não adora gato?
-- Eu adoro, mas não posso. Não posso nem chegar perto. A Sônia disse, eu corro risco de pegar toxoplasmose, é perigoso.
A cena está no You Tube, onde a vi, na terça, depois de receber uma enxurrada de emails indignados – e com toda a razão. Se pegar em gatos durante a gravidez fosse perigoso, todas as veterinárias grávidas estariam correndo risco. Felizmente, elas são bem informadas e sabem que só se pega toxoplasmose dos gatos ingerindo as suas fezes; e, para tornar o processo ainda mais complicado, desde que eles, gatos, estejam contaminados com a doença.
O diabo é que uma cena desinformada dessas, em pleno horário nobre, joga por terra anos de trabalho educativo. Não gosto nem de pensar na quantidade de gatos que serão abandonados – ou deixarão de ser adotados -- porque alguém ouviu na novela que as grávidas não podem sequer se aproximar deles!
Só para esclarecer: no Brasil, a principal causa de toxoplasmose é a ingestão de hortaliças mal lavadas e de carne crua ou mal passada. Às grávidas recomenda-se -- como, aliás, a todo mundo – lavar bem as mãos depois de limpar a caixa de areia dos gatos. E isso por noções básicas de higiene, e não por medo de toxoplasmose, que não dá em gato doméstico que come ração.
Para quem quiser maiores informações sobre a conexão entre gatos e toxoplasmose: http://bit.ly/eNUFcD. Este link leva, entre
outros posts, a uma crônica que publiquei aqui mesmo em setembro de 2003.
Faz tempo que a gente bate nessa tecla.
(O Globo, Segundo Caderno, 7.4.2011)
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