21.11.07



Diários da motocicleta


“Estou com o N95 e com o K790 na bolsa“, pensei. “Não posso desmaiar.” Eram cinco e meia da tarde, eu acabava de ser atropelada por uma moto e de descrever um ligeiro arco no espaço antes de aterrissar no asfalto em frente à Candelária. Algo tão estranho acontecera com a minha perna esquerda que até os fios de cabelo doíam. Quando o motoboy e um transeunte me carregaram do asfalto para a calçada, achei que nem os celulares favoritos conseguiriam manter meu sistema operacional funcionando. A dor estava forçando um apagão que o cérebro não descartava de todo, pelo contrário. Mas viver numa cidade sem lei tem desses problemas: a gente não só é atropelada num sinal vermelho como, ainda por cima, tem que fazer o possível e o impossível para não perder a consciência se quiser conservar a bolsa e a vida.

Na calçada, escorada numa barra de ferro enquanto esperava socorro, passei por sensações esquisitas: náusea, tonteira, um mundo que insistia em escurecer. Comecei a prestar atenção em coisinhas miúdas para me manter na superfície. Os jeans estavam com rasgões enormes e eu pensava quais poderiam ser cerzidos e quais poderiam ficar como estavam, para um look radical e personalizado.

-- Não acredito nisso! -- exclamou a Olívia semanas depois. -- Quer dizer que se você tivesse batido a cabeça e viesse a morrer no hospital seus últimos pensamentos teriam sido a respeito de dois celulares e de um jeans da Gap?!

Sinto dizer que sim. Nada de sublime me cruzou a mente; não vi nenhum playback da minha vida; não vi túneis iluminados, nem recebi grandes revelações do Todo-Poderoso.

* * *

O socorro chegou na forma de um carro pequeno, dirigido por um amigo da moça que estava de carona com o motoboy. Fui arrastada para o banco de trás por pessoas bem-intencionadas que não leram nenhum manual de primeiros socorros. O pior é que o meu cérebro estava funcionando tão mal que eu mesma não me lembrei das recomendações básicas de não se mexer em feridos.

-- Qual é o seu plano de saúde? -- perguntou a moça. Respondi, e ela mandou o motorista ir para o Copa d'Or. Pelo sim pelo não, liguei para o jornal para me certificar de que era isso mesmo. Era.

-- Hmmm, -- pensei com os meus jeans rasgados. -- Quer dizer que eles têm prática de atropelar pessoas.

A moça ligou para um amigo:

-- Não me espera não, que o Edson atropelou uma senhora sem querer e eu estou levando ela para o hospital.

-- Hmmm, -- pensei novamente. -- Quer dizer que eles atropelam pessoas de propósito nas horas vagas.

* * *

Na terça de manhã, depois de uma série aparentemente interminável de exames, fui operada. A cirurgia, que durou quatro horas, me deixou dois cortes de mais de um palmo cada de um lado e de outro do joelho, e uma quantidade de placas e parafusos segurando ossos cujos nomes eu desconhecia. Sou do tempo em que patela se chamava rótula e fíbula atendia por perônio, e mesmo assim nunca soube direito qual era qual. Aprendi, além disso, que osso sangra muito e dói mais ainda.

No dia seguinte, o cirurgião veio me ver. Estava contente e bem humorado, o que era bom sinal, e me cumprimentou:

-- Parabéns! Você sabe como quebrar um joelho!

Até hoje não tenho certeza se isso foi um elogio.

* * *

Muita gente quis que eu fizesse boletim de ocorrência do atropelamento. A culpa, no entanto, não foi do rapaz que me atropelou. Enquanto motos forem consideradas veículos inofensivos pelo Detran, enquanto costurar for prática rotineira e aceita por todos, enquanto empresas prometerem a seus clientes que podem entregar qualquer coisa em qualquer lugar da cidade em dez minutos, não haverá boletim de ocorrência que adiante nada. Os motoboys são pobres diabos que se acidentam continuamente e morrem como moscas em troco de uma miséria. São uma ferida social que não se cura com queixa na polícia.

* * *

Hoje faz um mês que tive a infeliz idéia de atravessar a rua para aproveitar a luz e tirar umas fotos da Candelária. Estou em casa há três semanas, quase sempre com a perna para o alto. Atualmente, a dor me incomoda menos do que os efeitos psicológicos da imobilidade: estou entediada, impaciente e ridiculamente desconcentrada. Sofro com a fisioterapia, e a perspectiva de encarar exercícios sérios assim que puder pisar no chão me deixa muito contrariada. Ainda outro dia cobrei da Mamãe:

-- Como é que pode isso?! Por que é que eu tive que herdar a disposição atlética do Papai e a paciência do Nonno?!

Meu Pai, cujo único esporte era xadrez, era, por outro lado, a pessoa mais paciente do mundo. Já o Nonno, meu avô materno, atleta por excelência a vida inteira, e dono de uma força de vontade inquebrantável, era, digamos, um tanto explosivo.

-- Tá, tá, -- emendei na hora. -- Eu reconheço, o Nonno era bem mais impaciente do que eu.

Mamãe nem se deu ao trabalho de levantar os olhos do jornal:

-- Só porque era homem. Se as mulheres fossem impacientes como os homens, a humanidade já tinha se extinguido há milhões de anos. De resto...


(O Globo, Segundo Caderno, 22.11.2007)

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