29.4.05



Se essa rua, se essa rua fosse minha...

Caía uma chuva fininha na sexta à tarde, enquanto eu subia a Vinicius de Moraes a pé, devagar, conversando com um amigo americano. Debaixo do braço, numa sacola de tela, levava a Keaton, meu pequeno Einstein quadrúpede, rumo ao veterinário. Faço este percurso inúmeras vezes por semana, a pé ou de bicicleta, sem prestar muita atenção à rua; para ser franca, apesar de ter uma disposição normalmente otimista, ultimamente ando prestando atenção mesmo é aos demais pedestres, tentando adivinhar qual deles será o assaltante disposto a me levar a bolsa e a vida.

Desta vez, porém, andava como se deveria andar por toda parte, isto é, de espírito desarmado, esquecida dos poucos transeuntes com quem cruzava. Estava tranqüila com a chuva, que afasta assaltantes; preocupada com a Keaton, que ia ser operada; entretida com John Perry Barlow, que tem um dos melhores papos do mundo; e atenta à calçada, em que a água e as folhas caídas desenhavam um caleidoscópio de imagens. Quantas fotos bonitas não estavam se perdendo!

O impacto visual era ampliado pelo calçamento, se é que assim ainda se pode chamá-lo: cimento partido por raízes, mosaicos de pedras portuguesas incompletos, buracos, elevações inexplicáveis. A beleza da decadência, que, pelo lado exótico e melancólico, teria me encantado em Tegucigalpa ou Bombaim, me deixou muito abalada aqui no Rio, provando que descaso na terra dos outros é refresco.

Se a rua mais famosa do bairro mais famoso da cidade mais famosa do Brasil está assim, como não estará o resto?! Há quanto tempo o prefeito não anda pela rua -- qualquer rua? Será que ele não vê isso? Ou será que, quando sai à rua, ele também, como todos nós, pratica a caminhada defensiva, essa moderna modalidade de passeio carioca?

* * *

Taí, aliás, um bom esporte para esquentar os jogos pan-americanos. Os atletas teriam que sair para passear sozinhos, percorrendo vagarosamente cinco quarteirões escolhidos ao acaso. Ganharia quem conseguisse manter os batimentos cardíacos dentro do normal, não caísse em nenhum buraco, não fosse assaltado, não fosse abordado por pedintes, não tropeçasse em bancas de camelô nem pisasse em moradores de rua adormecidos. Quem sofresse taquicardia, ficasse com as palmas das mãos suadas, olhasse para os lados desconfiado ou corresse estaria automaticamente desclassificado.

* * *

De todos os viajantes que conheço, e conheço muitos, não sendo eu mesma uma criatura particularmente estacionária, Barlow é o mais radical. Ganha a vida fazendo conferências, vai aonde é chamado e é chamado de todos os cantos. No seu último e-mail, a linha final, que dá aos amigos uma idéia de onde andará nas próximas semanas, lista 13 cidades no espaço de um mês, de Nova York a Leeds, passando por Recife, Las Vegas, Tucson, Salvador. Há muitos e muitos anos, quando ninguém sabia bem o que era internet, ele fez questão de ir ao Mali para implantar a rede por lá. Considerava isso importantíssimo para a sua disseminação, dado que, a partir de então, qualquer um poderia cobrar das autoridades do seu país a existência da internet, que "já existia até em Timbuktu"? Um argumento de fato eloqüente.

A nova paixão de Barlow é o Skype, o sistema de telefonia via internet que deu voz à rede, aproximando ainda mais as pessoas: afinal, a banda emocional da voz é incomparavelmente superior à da escrita. Mais uma vez, nada será como antes, ainda que a gente mal se lembre de como era naqueles tempos -- quaisquer tempos.

* * *

Enquanto esperávamos no veterinário, conversamos sobre o que conversam amigos que se vêem de raro em raro, mas se querem bem e se acompanham à distância; e conversamos sobre os milagres com que vamos nos acostumando, como se fosse absolutamente normal adormecer nos Estados Unidos e acordar no Brasil.

Teclo essas mal digitadas na madrugada de segunda-feira. Se tudo correr conforme os planos, adormecerei hoje em São Paulo e acordarei amanhã no México, onde trabalho um pouco e onde, logo em seguida, mergulho de cabeça nas férias. Mando notícias quando voltar, daqui a duas semanas.

* * *

Keaton está em boas mãos. É um quadrupinho valente e duro na queda, que, tenho fé, logo conseguirá se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, com a natural graça dos felinos.

* * *

Enquanto isso nós, que tanto condenamos as mães desavisadas ou mal-intencionadas que deixaram seus filhos sozinhos com Michael Jackson, aceitamos, passivamente, que o repelente vereador Jorge Babu, preso com Duda Mendonça na rinha de galos, participe da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente na Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro.

E eu aqui, reclamando das calçadas.


(O Globo, Segundo Caderno, 28.4.2005)

3 comentários:

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