7.4.05




Mundos sujos: ficção e realidade

Um ótimo livro cubano e uma pergunta às autoridades que defendem Duda Mendonça, o Intocável

"Entro numa farmácia e encontro uma prateleira estocada com dez marcas de escovas de dentes, cada uma oferecendo dez modelos diferentes; cada modelo, dez cores; cada cor, dez escovas pendendo de ganchos. Deve haver umas dez mil escovas de dentes em exibição e os fregueses caminham alheios à abundância que os cerca; os dez mil esmaltes de unha; os dez mil prendedores de cabelo; os dez mil batons."

Por acaso, fui para Miami com um livro singularmente apropriado para a viagem: "Mundos sujos", de José Latour. Eu não sabia nada a respeito do livro ou do autor, exceto pelos blurbs da capa e da contra-capa, isto é, aquelas frases pinçadas de resenhas assinadas por gente de quem nunca ouvimos falar, ou recortadas de jornais que não lemos ou nos quais já perdemos muito da fé, como o New York Times -- mas que, apesar de tudo, continuam a exercer com bastante eficiência o papel de propagandistas:

"Latour mantém o suspense e apresenta grandes surpresas... Uma visão iluminadora da condição cubana" (The Times); "Um romance notável" (Washington Post); "Uma leitura rica e veloz" (Los Angeles Times); "Um romance bom demais para ser encerrado dentro de um gênero" (The New York Times).

Para minha felicidade, desta vez era tudo verdade, a começar pela entusiástica declaração do NYT, estampada na capa. "Mundos sujos" é, de fato, um bom policial, mas o que o faz um ótimo livro é a sensível contraposição de dois estilos de vida igualmente decadentes e viciados, ainda que totalmente distintos.

De um lado, a Havana miserável dos cubanos desprotegidos, destituídos de tudo, inclusive (e sobretudo) de fé em Fidel Castro; do outro, a Miami resplandecente do consumismo desenfreado e arrogante, onde ter é cada vez mais importante do que ser.

A ligação entre esses dois universos diametralmente opostos é Elliot Steil, pacato professor cubano sem grandes ambições que, por artes do destino, acaba em Miami, enredado simultaneamente numa vendetta inesperada e num interessante e plausível caso de amor com Fidélia, mulher de boa formação que chegou ao mesmo tempo da ilha e que, como ele, tenta encontrar algum sentido no novo país.

É dela a voz do primeiro parágrafo, que pesquei de um recurso comum, mas muito bem usado por Latour, para manter certa distância entre a trama policial e as considerações filosóficas que tece sobre seus dois mundos: às vésperas de empreender a travessia que vai mudar a vida da família, Fidélia decide escrever um diário da aventura. Assim, enquanto Elliot age, ela questiona o que deixou para trás e o que vê à sua volta.

* * *

José Latour, o autor, mora em Havana, tem 65 anos e já escreveu sete livros. Este é seu primeiro romance em inglês, idioma no qual tem um título muito mais sutil do que este "Mundos sujos" que lhe pespegaram em português. Chama-se "Outcast", desajustado, pária, pois assim é o seu protagonista, visto com desconfiança em Havana, e pouco à vontade em Miami.

Sem amigos no Partido Comunista, sem parentes que lhe mandem dólares dos Estados Unidos, Elliott é obrigado a se virar, em Cuba, com um salário de professor, que dá pouco mais de dois dólares por mês. Como tantos de seus compatriotas, vive no limite da sobrevivência, sustentado, aqui e ali, por uma teia de pequenas infrações. Não é uma vida boa ou digna; mas não são as dez mil escovas de dente da farmácia de Miami que podem preencher as lacunas de nostalgia das vidas que um mundo sem solução deixa à deriva.

Latour não doura nenhuma das pílulas que oferece ao leitor. Cuba só parece mais humana porque nela Elliott está em casa; ainda assim, não há nenhuma compaixão à vista nas revelações de Fidélia, que expõem a perversidade natural da miséria. Tampouco há salvação no consumismo selvagem de Miami, que há tempos perdeu qualquer fio terra com as reais necessidades humanas. Não há ninguém inteiramente honesto em lugar algum, embora de um lado e de outro se encontrem pessoas bem intencionadas.

Já é muito, e está de bom tamanho.

* * *

Enquanto isso, no mundo sujo de cá, os policiais que tiveram a audácia de prender Duda Mendonça, o Intocável, continuam a ser implacavelmente perseguidos. Numa entrevista à revista "Consultor jurídico", o delegado Antônio Rayol revelou que ele e seus colegas já foram chamados para se explicar em cinco diferentes sindicâncias apenas nos dois últimos meses -- e ainda podem sofrer as conseqüências de um processo disciplinar.

Eu só queria saber a quantas sindicâncias o Marqueteiro Mor do Rei, notório torturador de aves preso em flagrante, teve que responder no mesmo período.


(O Globo, Segundo Caderno, 7.4.2005)

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