13.1.05




Tsunami, a palavra

Quase ninguém reparou, mas que nenhum jornalista se iluda ? há sempre um leitor atento às incongruências do jornal. Desta vez, o leitor foi Marcus Holanda, que escreveu perguntando por que, enquanto O Globo inteiro falava na tsunami, a minha crônica falava no tsunami; e, sobretudo, por que, no meu blog, a mesma crônica aparentemente se contrariava, tratando a onda no feminino. A questão do blog é simples: lá, tsunami estava no feminino porque é assim que falo e, conseqüentemente, é assim que escrevo.

A questão do jornal é mais complexa ? e bem curiosa. Acho que, com exceção de meia dúzia de sismólogos, a tsunami pegou mesmo todo mundo de surpresa, sob todos os aspectos. Nos primeiros dias, o jornal a tratou no feminino porque, imagino, não ocorreu a ninguém que pudesse ser de outra maneira. Apesar de exótica e pouco usada, a palavra designa uma espécie de onda e, até segunda ordem, onda, em português, é substantivo feminino.

* * *

A tsunami permaneceu no feminino até quarta-feira, dia em que esta crônica é fechada. Pela manhã, nosso ombudsman Luiz Garcia mandou um alerta à redação, informando que, de acordo com o Houaiss, tsunami é masculino. Por esquisita que seja, esta é a única forma oficialmente ?correta?, já que o Aurélio não registra o termo. José Figueiredo, o atento colega que sofre com as minhas idiossincrasias, pega as bolas na trave e garante que esta crônica siga os padrões da redação do Globo, prontamente corrigiu os artigos "errados" ? e o caderno foi rodado.

À tarde, durante a reunião de editores, a questão foi discutida e o Houaiss acabou sendo voto vencido. Prevaleceu a idéia, a meu ver inteiramente correta, de que deveríamos usar tsunami como a onda que é, independentemente do que diga o dicionário. O uso corrente da língua tem um quê de tsunami, uma força indomável que desafia regras e convenções gramaticais; além disso, por sagrados que sejam, os dicionários não são infalíveis.

Resultado: no dia seguinte, como nos dias anteriores, o noticiário continuou dominado pela tsunami. Se o Segundo Caderno não rodasse no começo da tarde e se, por acaso, eu não tivesse escrito sobre o assunto, ninguém jamais teria sabido da dúvida atroz que, durante algumas horas, se abateu sobre o jornal.

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Tenho uma relação muito particular com dicionários. Cresci junto com alguns deles numa época em que não eram criados em computador, mas em singelas fichas de cartolina, mantidas em ficheiros, gavetas e toda a espécie de caixas disponíveis. Lá em casa dividíamos o espaço ? já não muito grande ? com os três dicionários em que meu pai trabalhava quase que simultaneamente: o de francês, o de provérbios latinos e o de citações. E, volta e meia, estávamos com tio Aurélio, melhor amigo de papai e meu padrinho, que trabalhava num dicionário da língua portuguesa tão grande, mas tão grande, que precisava de um apartamento inteiro só para ele.

As fichas eram pautadas e vinham, em geral, da Papelaria União, um dos lugares mágicos da minha infância: adorava ir àquela papelaria comercial, tão pragmática e sem graça pelos padrões das suas elegantes primas de luxo. Para mim, porém, não havia nada sem graça na Papelaria União. Eu gostava de tudo naquela loja, do cheiro às infinitas possibilidades de diversão oferecidas pela mercadoria: pastas, latas de lixo para escritórios, fita durex, cartões e cartolinas, rolos de papel pardo, lápis, tesouras, resmas de papel almaço, barbantes, cadernos, goma arábica...

Papai colaborava com o dicionário do tio Aurélio, que, por sua vez, colaborava com os dicionários do papai. Ambos cultuavam a palavra exata, apreciavam o desafio de uma boa definição e passavam horas imersos nas tais fichas. Na primeira linha, um pouco mais forte do que as outras, anotavam a palavra em si; nas outras escreviam sua definição e, eventualmente, faziam anotações, referências a abonações e o que mais houvesse.

Às vezes, de tantas modificações, as fichas ficavam imprestáveis, e tinham que ser passadas a limpo. Antes que fossem postas fora, porém, podíamos usar o verso para desenhar. Eu ficava contente, por um lado, porque a cartolina era muito melhor de riscar do que o papel comum que habitualmente ganhávamos; mas, por outro, ficava danada com as palavras do verso. Uma das grandes injustiças do mundo, aos meus olhos de criança, era que só os adultos pudessem usar fichas novinhas para brincar.

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Manter as fichas em ordem alfabética era importantíssimo, já que elas tinham um talento todo especial para se esconderem entre as outras. Vez por outra alguém se distraía e pronto, era o caos: onde encontrar a palavra perdida?! Muitas vezes vi meu pai desesperado, procurando por uma palavra. O que pode soar como metáfora radical para a maioria das pessoas, para mim era um fato normal do cotidiano e tinha um sentido real, palpável. Uma palavra era, literalmente, uma ficha de 12 x 18, pautada, da Papelaria União.


(O Globo, Segundo Caderno, 13.1.2005)

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