16.9.04




Um avião fantasma brasileiro
no Adriático


-- Tudo começou no verão de 1996 -- disse Riccardo Bottazzo. -- Um dia, um pescador veio nos contar que, numa praia de pedras não muito longe daqui, a sua rede andava se prendendo em alguma coisa que arrastava por uns bons 20 metros antes de se soltar. Fomos até lá com ele, e passamos o verão inteiro procurando a tal coisa, que imaginávamos ser um avião. Afinal, se fosse um navio, a rede não conseguiria arrastá-lo. Mais especificamente, achávamos que era um avião de reconhecimento americano que, durante a Segunda Guerra, costumava inspecionar e fotografar a Laguna e o porto de Marghera para transmitir informações aos bombardeiros. Este avião acabou se tornando tão conhecido e familiar que os venezianos o chamavam de "Pippo".

Riccardo, duplamente colega como jornalista e mergulhador, é assessor de imprensa da região do Veneto e conselheiro da diretoria do Club Subacqueo San Marco. Nós estávamos conversando na sede do clube, que divide os antigos armazéns de sal do Zattere com duas outras sociedades esportivas, a Canottieri Bucintoro e a Compagnia della Vela.

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Os armazéns, que formam um lindo conjunto de edifícios, foram construídos no Século XV, quando o comércio do sal era um importantíssimo esteio da então poderosa economia veneziana. Foram reformados em princípios do Século XIX mas, apesar de terem perdido a função original há tempos, continuam sendo conhecidos como Magazzini del Sale . Dizem que a Fundação Peggy Guggenheim, que fica ali perto, anda de olho neles, para transformá-los em área de exposição; as associações esportivas, compreensivelmente, detestam a idéia.

Mesmo numa cidade de canais como Veneza, é difícil encontrar melhor localização para clubes de esportes aquáticos. Os armazéns são amplos e o Zattere, espaçoso e tranqüilo, fica ao longo do Canale della Giudecca, que é, mal comparando, a Avenida Brasil da cidade. Por este largo e profundo canal passam embarcações de todos os tipos, de barquinhos singelos a transatlânticos de luxo, maiores e mais altos do que qualquer construção que se veja às suas margens; passam canoas de remo, veleiros e ferries que transportam motos, carros de passeio, betoneiras e os caminhões que abastecem o comércio; passam vaporettos, motoscafos, gôndolas e os demais membros da exótica família de embarcações venezianas. Quando anoitece e ninguém está prestando atenção, passam até lanchas de playboys, envenenadas, botando pega.

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-- Aqui, o fundo do mar é literalmente coalhado de antiguidades -- observou Riccardo, que entre suas muitas atividades é também editor da simpática revista "El Mar", publicada pelas três vizinhas dos armazéns do sal. -- Para mergulhar na Laguna precisamos, antes de mais nada, ter um plano de ação bem definido, e apresentá-lo à superintendência de bens históricos submersos. Se ele for aprovado, inspetores e técnicos do patrimônio nos acompanham durante os mergulhos.

O suposto avião encontrado pelo pescador, no entanto, estava no Adriático, menos complicado de explorar.

-- Procuramos muito. O verão terminou, a temperatura começou a ficar fria demais para mergulharmos e estavamos quase desistindo quando encontramos o avião. Mas não era o Pippo! Era um caça P47. A estrutura estava carcomida demais para que se pudessem ler as suas marcas, mas não era um avião americano, já que os registros dos EUA não acusam nenhum P47 abatido na zona, nem inglês, já que os ingleses não voaram por aqui durante a guerra. Passamos o inverno inteiro tentando descobrir o mistério. Telefonamos para todos os ex-combatentes ainda vivos, até que, finalmente, um ex-oficial esclareceu a questão. O avião era brasileiro! Uma esquadrilha brasileira juntou-se aos americanos em 1944, realizando diversas missões na região.

Segundo o velho aviador consultado pelo pessoal do Subacqueo San Marco, sete caças brasileiros, que bombardearam a estação ferroviária de Treviso e outros alvos estratégicos, teriam sido abatidos na área. Mas ou a memória do ex-combatente italiano está falhando, ou a lenda ampliou-se com o passar das décadas: em várias páginas da internet sobre a atuação da FAB na Segunda Guerra, encontrei referência a apenas dois P47 derrubados no mar. Qualquer que seja a conta, porém, um foi encontrado... para desaparecer em seguida.

-- Há diversos grupos de mergulhadores piratas na Europa que vivem de revender o que encontram no fundo do mar, -- explicou Riccardo. -- Não sabemos o que aconteceu com as bombas que o P47 carregava, mas um desses grupos achou o avião e roubou o motor para vender como ferro velho. Com isso, a carcaça ficou leve demais, à mercê das correntezas e das redes dos pescadores, que freqüentemente a arrastam por muitos metros antes de se soltarem ou se romperem. Nós mesmos, do Subacqueo San Marco, não o avistamos mais desde que o encontramos, nem sabemos onde, exatamente, se encontra neste momento. Veja só: um verdadeiro avião fantasma, singrando as águas do Adriático...


(O Globo, Segundo Caderno, 16.9.04)

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