2.9.04



A gangorra emocional da semana

Depressão com o governo, redenção com Bethânia


Quando eu estava crescendo no Bairro Peixoto, havia casas feias. Casas que não combinavam com uma idéia particular do que era bonito, com o ideal dos livros de arquitetura ou, pura e simplesmente, com o olho da gente. Depois veio a especulação imobiliária e botou a cidade abaixo, sem fazer qualquer distinção entre as casas: feias, bonitas, humildes ou suntuosas, todas foram demolidas para dar lugar aos edifícios que aí estão, iguais no descaso com a paisagem, na falta de capricho, de idiossincrasias e de um mínimo de humanidade.

Hoje não há mais casas feias aos meus olhos. Diante da brutalidade do que se construiu no Rio, não consigo deixar de gostar de uma falta de simetria aqui, de um excesso de estuque ali, de uma indefinição entre a vontade e a realização. Não consigo deixar de gostar das casas com personalidade, pequenas ilhas de caráter e autenticidade numa paisagem urbana cada vez mais deteriorada.

Ir ao Centro, onde alguns trechos não podem ser mais Habana Vieja de tão decaídos, é uma experiência angustiante, cheia de altos e baixos emocionais. Não importa quantas vezes eu passe pelas mesmas ruas, sempre me deslumbro com os casarões. A sua graça, que resiste ao tempo e aos maus tratos, me faz sentir uma nostalgia enorme dos tempos em que o Rio era uma cidade faceira, que se cuidava; o seu estado de abandono e a insegurança que os cerca me fazem sentir um ódio implacável pelos sucessivos governos que os deixaram chegar a este ponto, e que a este ponto não souberam amar a cidade.

Há uma teia de ruas cravejadas de maravilhas entre o jornal e Lapa, há quarteirões tocantes por trás do sambódromo, remanescentes da sanha demolidora com que se abriu o Santa Bárbara. Nenhuma dessas áreas foi, em momento algum, uma área nobre. Os sobrados e casas que se mantém de pé, construídos em fins do século XIX e princípios do século XX, falam de uma gente humilde em ascensão, de uma pequena classe média, de comerciantes que moravam no andar de cima das lojas. Qualquer dessas ruas pobrezinhas, porém, tem, ainda hoje, mais beleza e mais caráter do que qualquer avenida da Barra.

* * *

Ando muito sensível com o abandono do Rio. Olho para a minha cidade como quem olha para um amor ferido: a ressaca no Leblon, a luz das tardes do Aterro, as capivaras da Lagoa, as revoadas de pássaros -- tudo me dói no coração, tudo me lembra que, tanto aqui quanto em Brasília, temos governos incapazes de se comoverem com toda esta beleza ameaçada.

O sol se põe por trás das montanhas, a lua cheia brilha sobre as águas e a revolta quase me sufoca: como podem existir pessoas para quem o destino deste lugar abençoado signifique tão pouco?! Que espécie perversa de cegos está no poder?!

* * *

"Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água,
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos..."

* * *

Pois é; mas vocês precisam ouvir esses lindos versos do Vínicius ditos pela Maria Bethânia! "Brasileirinho", que voltou ao Canecão na semana passada e fica em cartaz até domingo, é absolutamente emocionante, um dos espetáculos mais bonitos que já vi. Ali está o Brasil do coração da gente, essa mistura de ternura e perplexidade que nos acompanha e é tão sutil, tão distante dos ufanismos políticos; a pátria gentil e amada, tão rica na sua simplicidade e tão complexa nos seus sentimentos; a pátria que, traduzida em música, consegue o prodígio de alcançar o âmago do coração urbano com um luar do sertão. "Brasileirinho" toca naquela parte recôndita da alma brasileira que resiste aos modismos e ao som enlatado da globalização.

Não há erros neste show de acertos, do cenário de Gringo Cardia à luz de Maneco Quinderé, da direção de Bia Lessa aos arranjos e à regência de Jaime Alem; e, claro, acima de tudo, a voz e a presença inigualáveis de Maria Bethânia.

Devo dizer, aliás, que sou devota de Maria Bethânia, que divide o altar da minha máxima admiração com Fernanda Montenegro. Gosto muito de inúmeros artistas, sou fã sincera de vários deles mas, diante de Bethânia e de Fernanda, tenho sempre a sensação de estar na presença de seres de outra dimensão, habitantes talvez de um planeta diferente, onde as pessoas já evoluíram o suficiente para descobrir a verdadeira essência das coisas.

Agradeço à minha boa estrela o privilégio de ter nascido no tempo dessas duas mulheres extraordinárias, para além do talento curiosamente tão parecidas também na sabedoria, no recato e na elegância.

(O Globo, Segundo Caderno, 2.9.04)

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