6.11.03



O mundo por um fio:
viajando em trevas

Nada mais claro, no escuro, do que o óbvio: estamos presos a uma tomada


E, de repente, lá estava eu, às voltas com um problema absolutamente inédito: como distinguir o shampoo do creme rinse no escuro? Não, não estou falando desse escurinho fajuto aqui do Rio, sempre temperado pela luz de um luminoso ou de um carro que passa lá embaixo. Estou falando de um escuro medieval, em que não se enxerga o proverbial palmo diante do nariz; um escuro em que qualquer bípede com um mínimo de juízo recolhe-se à toca e enfia-se debaixo das cobertas, para esperar a salvo a luz redentora do dia seguinte.

O bípede que vos tecla, contudo, que ainda acha a falta d’água um mal maior do que a falta de luz, decidiu ir para o chuveiro enquanto o banho era possível. Eu estava num hotel em Florianópolis, em pleno apagão, e as duas embalagenzinhas rigorosamente idênticas eram apenas mais um dos inesperados desafios da noite. Em geral, a gente não precisa sequer ler as etiquetas do creme rinse e do shampoo para saber qual é qual: basta olhar para eles. Pois é.

* * *


Quando o apagão começou, na hora do almoço, eu estava no Centro de Convenções, participando de um evento de telecomunicações muito apropriadamente chamado de Futurecom — ou alguém aí imagina o futuro bem iluminado e sem problemas? Nisso, aliás, Florianópolis provou estar na vanguarda da modernidade, seguindo tendência apontada por São Paulo, Nova York e Londres.

Como o dia ainda estava claro, ninguém se preocupou com a situação. Afinal, blackouts só se tornam blackouts ao cair da noite. Até lá, atendem por nomes menos ameaçadores, como queda de energia ou falta de luz, e causam no máximo irritação. Com o tempo, a irritação dá lugar a sentimentos mais complexos: inquietação, desasossego, insegurança, preocupação. Há quem chegue ao pânico. Eu, no negrume do quarto, fazendo a mala à luz de um Palm — computadorzinho de bolso com bateria animal e tela brilhante, uma tecnologia de ponta que nunca pensou em exercer a humilde função de lanterna — cheguei à filosofia. Pensava e pensava, e não conseguia parar de pensar.

Sobre o escuro, é claro.

Desde o começo da tarde, a vida em Florianópolis havia se transformado numa grande lição. Tudo denunciava a nossa crescente dependência da energia, dos celulares mudos aos computadores mortos, passando pelo almoço frio por falta de microondas, pelos refrigerantes quentes por falta de gelo e pela falta d’água geral nas torneiras nos banheiros públicos, acionadas por sensores elétricos. Isso para não falar da pior falta de todas, a de notícias.

* * *


Até princípios do século passado, a humanidade convivia relativamente bem com a ignorância dos fatos. Navios levavam meses para atravessar o oceano com as novidades, cartas chegavam até depois da morte dos remetentes ou dos destinatários e países como a China, que ficavam do outro lado do mundo, eram apenas material de lenda e anedota.

Hoje, cercados de antenas e de conexões, não só estamos em permanente comunicação com os amigos e com a família, como ficamos consternados quando a televisão nos mostra os parentes das vítimas do avião que acabou de cair no Tajiquistão. O mundo virou uma espécie de CD metafísico, com muito mais informação e sem lado B. Tudo é aqui, e tudo tem que ser agora.

* * *


Depois de quase uma hora de caminhada por ruas suspeitas e semidesertas, nosso intrépido grupo de jornalistas chegou ao hotel. Apesar do mobiliário espartano e do desconforto imbatível do estabelecimento, o saguão estava cheio de gente. Ninguém queria ir para o quarto. Lógico: o escuro compartilhado pode ser até engraçado, mas o escuro a sós, num lugar estranho e pouco convidativo, é o que há de deprimente. Além disso, nas áreas públicas ainda havia lâmpadas de emergência, ao passo que nos quartos não havia nem velas, proibidas por medo de incêndio.

* * *


O que me salvou foram as maquininhas que me fazem companhia. A luz do Palm, plantado em frente a um espelho, foi suficiente para mostrar os móveis e me deixar adivinhar objetos; o celular, que pisca a intervalos regulares, funcionou perfeitamente como indicador de onde estavam os óculos, que deixei a seu lado.

Só depois do banho, com a mala pronta e as máquinas afinal desligadas, é que me deixei envolver de vez pelo apagão. Não sei o que era mais denso, se o escuro ou o silêncio, despido da cacofonia que habitualmente nos cerca, e em que nem reparamos mais. A geladeira, o ar refrigerado, o ventilador, as lâmpadas fluorescentes — todos falam, à sua maneira. Como acontece tantas vezes, só os ouvimos quando se calam.


(O Globo, Segundo Caderno, 5.10.2003)

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