13.11.03



A bolsa ou a vida!

O que é mais cafona: uma bolsa Vuitton autêntica
a R$ 3.500 ou uma falsificada a R$ 300?



Quem leu o Ela no sábado passado sabe: Maria Clara Diniz, a heroína da novela das oito, usava bolsa Vuitton falsificada. Inacreditável! A contravenção foi descoberta pelo diretor-geral da marca que, chocado com o faux-pas da produção, prontamente enviou para a Rede Globo uma bolsa original. Agora, o pessoal da Delegacia de Repressão contra os Crimes de Propriedade e Material (que não se perca pela extensão do nome), recém-criada aqui no Rio e primeira do Brasil, já pode respirar aliviado: sai a bolsa cafona de R$ 300, entra a bolsa cafona de R$ 3.500.

Embora, tirando o atento diretor-geral da Vuitton, ninguém vá reparar na diferença.

É muito grave o problema social criado pela bolsa Vuitton falsificada. Medidas urgentes têm que ser — e serão! — tomadas para garantir que a patroa, ao sair pelo elevador social com sua bolsa comprada a peso de euro, de ouro, em Paris, não passe pelo constrangimento de cruzar na portaria com a empregada, que entra pelo elevador de serviço, portando uma bolsa não-Vuitton, igualzinha, comprada a dez real ali na esquina. Onde é que nós vamos parar? Assim, vamos acabar batendo com a cabeça na igualdade.

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Não é cômico. É até muito sério. Mas não pelo artigo pirata, e sim pelo artigo genuíno. Há algo errado, até socialmente doente, com uma bolsa de R$ 3.500. E há algo de muito errado com uma sociedade em que alguém que compra uma bolsa de R$ 3.500 é considerado chique, e não otário.

Não há, numa bolsa, material ou qualidade de trabalho que justifiquem um preço desses; a não ser, é claro, o valor intangível daquelas letrinhas estampadas, cuja única finalidade é proclamar aos céus que ali vai uma pessoa com muito dinheiro e pouco critério. Em suma: um otário. Feminino, na grande maioria dos casos.

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Ao contrário do que esse parágrafo pareça insinuar, eu não sou uma Ralph Nader tardia. Como quase todo mundo — intelectuais do Joãosinho Trinta à parte — gosto de luxo e riqueza, e já fiz extravagâncias de consumo suficientes para arder para sempre no fogo do inferno, que se alimenta basicamente na fogueira das vaidades burguesas.

Mas há uma perversidade na relação custo-benefício de uma bolsa Vuitton, um exagero de consumo, que me revolta pela evidente agressão social que projeta. Há uma profunda deselegância moral naquelas letrinhas estampadas. Seriam mais honestas se fossem cifrões. Que me desculpem a Maria Clara Diniz, o diretor-geral da marca e as moças todas que andam por aí de Vuitton a tiracolo, falso ou verdadeiro. É tudo falso.

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E é implicância minha sim. Mas não com a Vuitton, especificamente. A Vuitton é apenas o emblema momentâneo do meu completo desgosto com pessoas cujos valores sociais e humanos são tão primários, mas tão primários, que dependem de bol$a$ como essas para saber com quem devem se relacionar.

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E, por falar em valores sociais e humanos deformados: o ministro da Previdência continua pedindo desculpas pelo incômodo e humilhação a que submeteu os velhinhos. Sinto, mas não acredito na sinceridade dessas desculpas — que só saíram, a custo, quando o governo viu a reação indignada da sociedade. Continua valendo a imagem do burocrata arrogante, que não só achou perfeitamente normal suspender o pagamento das pensões dos nonagenários como, ainda por cima, não viu necessidade alguma de pedir desculpas a ninguém. Enquanto, é claro, se sentia seguro no cargo.

Para mim, a qualidade fundamental do ser humano é a bondade, e essa o ministro já provou que não tem. Uma pessoa que não preza o seu semelhante, que não leva em consideração os sentimentos e o bem-estar dos outros — ainda por cima quando esses outros são, justamente, a parcela mais frágil da população — não merece crédito nem confiança.

É no mínimo desconcertante verificar que o governo do PT — supostamente “popular” — não pensa assim. Ao classificar a barbaridade que se viu como um simples “erro operacional”, o presidente Lula perdeu (mais uma) ótima chance de ficar calado.

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Antes que me acusem de ingratidão, e de ter abandonado as capivaras depois de tudo o que elas fizeram por mim, informo que as duas (sim, são definitivamente duas!) capivaras da Lagoa estão vivas e bem, e cada vez mais gordinhas. Ambas foram vistas no último fim-de-semana nas suas respectivas querências. A que vive em frente à minha casa, e é macho (sim, já se sabe que há uma capivara macho e uma capivara fêmea!) foi, inclusive, fotografada por um amigo, que gentilmente me cedeu as fotos. Elas estão no meu fotolog, em www.fotolog.net/cronai.

(O Globo, Segundo Caderno, 13.11.2003)

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