10.4.03




Consumo: a infelicidade ao alcance de todos

"A maior parte das crianças da Febem roubou a primeira vez para consumir, instigada pela propaganda maciça que tem a petulância e a insensatez de ditar o que somos, de onde viemos e para onde vamos. Os desejos destes meninos e meninas podem ser um tênis igual ao do ídolo rap, a bolsinha da Xuxa, a sainha da Carla Perez ou a droga que irá abrir o portal do poder. Eles pensam assim: — Besta é tu que perde tempo e saúde trabalhando — mesmo que estejam naquela situação degradante de internos da Febem.”

A declaração é da psicóloga Henriette Tognetti Penha Morato, da USP, e quem me chamou a atenção para ela foi o educador Cláudio Rúbio, o Claudinho — que, como tantos outros bons amigos de internet, nunca encontrei na “vida real”. Sempre preocupado com crianças, sobretudo com aquelas que vivem e morrem às margens do “sistema”, Claudinho é mestre em encontrar coisas assim, que dão o que pensar. Essas palavras estavam, paradoxalmente, numa reportagem sobre os riscos que correm as crianças superprotegidas, escrita por Lilian Primi e publicada pelo “Estadão”.

O nível de infelicidade gerado pela sociedade de consumo nunca deixa de me assustar. Houve um tempo em que as crianças usavam sapatos — melhores ou piores, conforme a sua situação social, mas essencialmente iguais: eram apenas calçados. Hoje são Nikes, Adidas e Reeboks, e um menino mata outro menino por um par de tênis. Não porque não tenha o que calçar, mas porque não tem o tênis que a publicidade diz que é bacana, o tênis que é fundamental para que seja reconhecido pelo seu círculo social.

O pior é que, em seus sonhos malogrados de consumo, as crianças da Febem não são a exceção, mas a regra: o que as separa das crianças da classe média é que não têm a quem infernizar em casa, pedindo mais um boné, mais uma Barbie, mais uma camiseta. Mesmo os adultos mais atentos e mais críticos, que reagem contra o consumo óbvio das etiquetas do lado de fora, acabam, por exemplo, bebendo uma vodka em vez da outra, só porque a imagem que uma conseguiu criar combina melhor com o seu jeito de ser, ou com o que gostariam que fosse o seu jeito de ser — e essa “mensagem” está lá, no fundo da cabeça, na hora de comprar. Não importa que não se consiga diferenciar uma da outra sem os rótulos, ou mesmo que nem se beba; uma é cool , a outra não é. A partir daí, vamos inventar mil razões para justificar a escolha que não fizemos.

Perversamente, as imagens do consumo nunca funcionam no positivo, isto é, quem bebe a vodka (ou usa o tênis, ou fuma o cigarro) não se sente particularmente feliz por causa disso; mas quem vai ao shopping e não pode levar o que é cool sente-se inferior ou, no mínimo, inadequado — e volta para casa com uma frustração pré-fabricada, uma sensação ruim que a cada dia faz mais e mais vítimas. Até porque não há limites para essa infelicidade. Há sempre um novo objeto a ser cobiçado, um novo patamar de desperdício a alcançar, até se chegar aos 3.500 pares de sapatos da Imelda Marcos ou às torneiras de ouro de Saddam Hussein, à sua maneira crianças da Febem, desmascaradas pelas crianças da classe média lá de cima, que tudo podem.

* * *

Eu estava escrevendo esta coluna quando recebi o e-mail de uma amiga:

“Era só o que faltava!!!! Um imbecil está anunciando gatos pretos para fins de magia negra na Semana Santa!!! Tem pessoas desesperadas dando lances para tentar salvar os gatos... Onde iremos parar, meu Deus???”

Meu coração gelou.

Coitados dos gatinhos pretos! Antes mesmo de conseguir carregar a página do Mercado Livre, mil coisas me passaram voando pela cabeça. Que órgão poderia receber uma denúncia contra o vendedor? Com quem se poderia falar no Mercado Livre para impedir essa barbaridade? Que editoria aqui no jornal poderia fazer uma reportagem a respeito do assunto, antes que os bichinhos fossem arrematados? Quanto eu teria no banco? Socorro!!!

Finalmente, cheguei à página macabra, onde fui recebida por letras garrafais:

“Resposta para todos: os gatos pretos são ídolos esculpidos de tamanho pequeno, para servir como santinho... Não é gato de verdade, é estátua... Só tem este título para chamar a atenção... Muito obrigado pela visita, já sei como chamar a atenção de todos: é só colocar um título bom como este! Estatística até o presente momento: 213 visitas em pouco tempo.”

Ufa.

(O Globo, Segundo Caderno, 10.5.2003)

Update: Para os leitores habituais do blog, este texto é muito familiar: ele nasceu aqui, e depois foi para o jornal, com modificações. Quanto à questão dos gatinhos, conforme está se vendo agora (leiam os comentários do post) parece que é mais séria. Aparentemente o canalha estava de fato vendendo gatinhos pretos, e inventou que eram estátuas quando viu a repercussão do anúncio. É caso de polícia. Felizmente, a turma que defende animais em SP se mobilizou e está apurando os fatos.

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