16.10.02




Porque estou onde estou
(em vez de estar onde deveria)

Este post deveria estar sendo feito de Nova York, onde, a princípio, eu deveria estar me preparando para ir a Rochester, logo mais. Lá vai acontecer, na quinta-feira, um tech day da Xerox, ou seja, um dia em que a empresa abre seu centro de pesquisas para mostrar, para um pequeno grupo de jornalistas, o que tem no forno. É uma chance muito rara de conhecer laboratórios, ver tecnologias que só estarão em uso dentro de meses (às vezes anos) e de conversar com os cientistas que as estão desenvolvendo.

Um tech day desses é a minha idéia de parque de diversões, de dia feliz, de ter acertado na loteria da vida. Escrevendo sobre tecnologia desde 1987, tive a sorte extraordinária de ter conhecido alguns dos principais laboratórios do mundo, entre eles o PARC, da própria Xerox, o Thomas Watson, da IBM, ou o Bell Labs, então da ATT -- para ficar apenas nos mais conhecidos.

Estive uma vez também, há muitos anos, neste mesmo Wilson Center for Research and Technology onde deveria estar hoje, e vi, então, uma tecnologia que me deixou de queixo caído: um sistema de correção de cores para scanners que equilibrava, automaticamente, as cores perdidas daquelas fotos antigas que vão ficando avermelhadas com o tempo. Hoje qualquer scanner doméstico faz isso, mas o impacto de se ver uma coisa dessas em primeira mão, conversando com quem a fez, é imbatível.

Então, o que é que eu estou fazendo aqui?!

Estou pagando meu tributo à vitória da burocracia sobre o bom-senso, ao triunfo da paranóia sobre a felicidade e à constatação de que, às vezes, realmente, certas coisas não são para ser. Dá-se que os passaportes brasileiros são válidos por cinco anos, ao passo que os vistos para os Estados Unidos são válidos por dez. O meu visto, válido até 2006, está num passaporte que venceu em 1997, ao qual juntei, então, o passaporte que venceu este mês.

Ora, este singular documento cut-and-paste, tendo embora despertado, às vezes, certa curiosidade na comunidade aduaneira, nunca me impediu de viajar para canto algum, nem de obter vistos para locais notoriamente difíceis, como China ou Rússia. Há, espalhados em suas folhas, mais de vinte carimbos de entrada e saída dos Estados Unidos, muitos feitos dos atentados para cá. Mas, desta vez, pela primeira vez desde o fatídico dia 11 de setembro, eu estava viajando também com um passaporte estalando de novo.

Na segunda-feira, devidamente munida de passagem e dos passaportes vencidos e novo, toquei para o Galeão, um pouco atrasada, como sempre, mas feliz da vida. Na Linha Vermelha, engarrafamento monstro; mas o motorista, craque, cortou e costurou o que pôde e, ufa, consegui chegar a tempo ao aeroporto.

Porém...

Sabem aquela moça que fica no começo da fila, conferindo passagens e passaportes? Pois é. Desta vez era uma moça em câmara lenta. Tirou o meu passaporte velho de guerra da capa, olhou, tornou a olhar, abriu todas as folhas. Reconheço que ele fica horrível, assim despetalado.

-- Um minutinho.

E sumiu, com passaporte e passagem. Voltou depois de váááááááários minutinhos.

-- A senhora não vai poder embarcar. Este passaporte está mutilado.

-- Mas viajo com este passaporte, assim como está, há cinco anos!

-- Sinto muito. É o regulamento.

Vocês acham que adianta argumentar com alguém que põe o regulamento antes do bom-senso? Percam as esperanças! Gastei muito latim (e não pouco tempo) até aparecer um funcionário que, depois de olhar para mim e para os passaportes, e de concluir que não representávamos grande perigo para a humanidade, liberou meu embarque. Mas aí já se haviam passado mais de trinta minutos, e o check in estava fechado.

Fiquei com vontade de:

1) Estrangular a moça em câmara lenta, que com tanto zelo cumpria o regulamento; e

2) Sentar no chão e começar a chorar.

Como nenhuma das alternativas resolveria o problema, fui, com a ajuda do pessoal da Varig, para o Terminal 1, tentar embarcar via Delta por Atlanta. Nada feito. Vôo fechado, sem comida embarcada para um passageiro a mais (exigência ridícula da IATA) -- e, além disso, com um passaporte sem visto e o visto num passaporte todo rabiscado... Ah, sim, é verdade, faço anotações na página final: telefones de emergência, números dos programas de milhagem, essas coisas -- nada que jamais tenha sido considerado pecado por quem quer que seja.

Não era o meu dia.

Joguei a toalha, voltei para casa e, ontem de manhã, fui à luta da transferência do visto para o passaporte novo, que em circunstâncias normais a assessoria de imprensa do consulado americano resolveria. A transferência é relativa; na verdade, trata-se de um visto novo, apenas menos complicado de se obter em função da existência de um visto válido.

Começou, aí, a corrida contra o tempo. Agora não são mais aceitas fotos com óculos, e nas que eu tinha estou de óculos. A taxa para o visto só pode ser paga no Citibank da Rua da Assembléia, que ignora solenemente a lei que obriga os bancos a não deixarem os clientes mais de 30 minutos na fila. Finalmente, quando cheguei ao consulado, suada e esfalfada, surprise!: o sistema estava caído.

Tá.

Há um momento em que tudo conspira contra a gente; ou a favor, sabe-se lá. Ignorar tantos sinais do destino é temerário.

De modo que, em vez de tentar embarcar novamente (evitando a moça em câmara lenta), deixei no consulado os passaportes, o comprovante da taxa e as fotos da máquina de fazer mosntrinho. Preenchi os dois formulários mais ridículos de todos os tempos -- planeja executar ações terroristas em território americano? pretende levar drogas na bagagem? está planejando algum seqüestro? -- e agora aguardo um visto válido num passaporte válido. Que prometo à Varig não mutilar e à Delta não usar como bloquinho de anotações.

Tristíssima de não ter ido ao meu tech day e irritadíssima com o trânsito, as filas, a burocracia e os sistemas, fiz a única coisa que podia fazer.

Cortei o cabelo.

E pronto.

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