20.2.03



O filósofo anônimo de Houston

(Aos de casa: vocês vão reconhecer um trecho da coluna de hoje, que saiu daqui. Pulem por cima, mas não deixem de ler o final, que é importante)

Há alguns anos peguei um táxi em Houston, Texas, onde participava de uma conferência. O motorista era chileno — e lá fomos nós batendo papo em portunhol até o meu destino. Perguntei por que tinha emigrado, e a resposta foi a de dez entre dez motoristas de táxi estrangeiros radicados nos EUA: as coisas andavam difíceis em casa, precisava ganhar dinheiro. Já morava em Houston há quase dez anos, adorava a cidade, o clima e o trabalho, estava feliz.

— Então você não volta mais?

Como não? Lógico que voltava! Aliás, sonhava com isso. Assim que tivesse o suficiente para comprar uma casinha em Santiago, adiós , América...

— Ué, mas não está tudo tão bom aqui?

Ah, sim, claro. Ninguém podia, em sã consciência, se queixar de Houston, do clima ou da grana disponível para quem estivesse decidido a dar duro. O problema eram as pessoas. Perguntei o que havia com as pessoas.

— Lo que passa, señora, es que son todos anormales.



OK. É uma generalização, e nenhuma generalização deve ser levada ao pé da letra. Um total exagero. A manifestação de um homem incapaz de perceber os matizes e as sutilezas das diferenças culturais entre os povos. Uma afirmação leviana que não merece qualquer consideração. Uma injustiça com os milhões de americanos que não são anormales — muito embora há quem assegure que, visto assim de perto, ninguém é normal.

Tirando isso, o meu filósofo anônimo de Houston acertou na mosca.

Não sei quantas vezes, de lá para cá, esta foi a única explicação que consegui encontrar para o comportamento no mínimo bizarro dos vizinhos lá de cima. Como explicar o processo de impeachment de Bill Clinton? Como explicar que alguém possa andar com armas à mostra, em pleno dia, mas tenha que esconder latinhas de cerveja em sacos de papel? Como explicar a Cher? Como explicar que, neste momento, dois terços da população apóiem a guerra contra o Iraque?

Ontem mesmo um amigo me repassou isso:

“Refletir sobre a guerra é pensar na mais terrível das experiências humanas. Nesta manhã de fevereiro, no instante em que esta Nação se encontra às vésperas da batalha, cada americano deveria estar refletindo sobre os horrores da guerra.

Entretanto, esta casa está, em sua maioria, silenciosa --- inquietante e assombrosamente silenciosa. Não há debate, não há discussão, não há qualquer tentativa de se mostrar à Nação os prós e os contras desta guerra em particular. Não há nada.

Aqui no Senado Federal dos Estados Unidos estamos mudos e impassíveis, paralisados pela nossa própria incerteza, aparentemente atordoados pelo tumulto dos acontecimentos.”

Esta é a abertura de um discurso proferido pelo senador Robert Byrd na penúltima quarta-feira, dia 12. A íntegra, em inglês — que merece ser lida — está aqui. É uma peça de oratória da melhor qualidade, cheia de brilho, bravura e verdade.

Fui procurar mais informações sobre o homem que teve a coragem de dizer palavras tão justas num momento em que a oposição ao governo Bush não é vista com bons olhos, e descobri a única coisa que atrapalha o discurso: a biografia do autor. Com 85 anos, há 50 representante democrata de West Virginia, Robert Byrd, decano do Congresso, defensor dos direitos dos animais e um dos mais veementes críticos de George W. Bush, participou ativamente da Ku-Klux-Klan na mocidade e, ao que parece, continua racista até hoje. A única coisa que posso dizer, depois dessa, é que mesmo um relógio quebrado está certo duas vezes por dia.

De resto, para variar, fico com Shakespeare, que previu tudo:

“Desgraçado do tempo em que os loucos guiam os cegos.”



Enquanto isso, no Brasil, parece que todos ficaram surdos. Não há, no mundo da música, quem não tenha ouvido falar em Hans Joachim Koellreutter — quem não tenha sido seu aluno ou aluno de aluno seu. Os círculos concêntricos de conhecimento e renovação que criou ao chegar ao Brasil, em 1937, fugindo do nazismo em sua Alemanha natal, atravessaram décadas e gerações. O nosso ministro da Cultura certamente sabe disso.

Koellreutter ampliou as fronteiras da nossa música e da cabeça dos nossos músicos; de Tom Jobim a Tom Zé, todos se reconheceram seus devedores, num ou noutro momento. Koellreutter foi festejado, recebeu honrarias no Brasil e no mundo e, até dois anos atrás, continuava compondo, inventando, dando aulas.

Hoje, aos 88 anos, sofrendo de mal de Alzheimer, vegeta em casa. Não reconhece ninguém. Não fala. Não consegue sequer alimentar-se sozinho. Está abandonado, à beira da miséria, vivendo do que ganha sua mulher, obrigada a trabalhar para sustentá-lo. Não tem uma única aposentadoria que lhe dê um mínimo de dignidade.

“A história deste homem, terminada desta maneira, torna indigna a nossa sobrevivência” — escreveu Rubens Pileggi Sá, em Londrina. “Não se trata de fazer vaquinha entre artistas e produtores culturais. Trata-se de resgatar uma dívida inalienável do país consigo mesmo. Algo que nos orgulhe como cidadãos.”

Ele tem toda a razão.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 20.02.2003)

Update: Nenem Krieger, mulher do maestro Edino Krieger, informa que a situação do Koellreutter não é tão desesperadora quanto reportou o Rubens. Ele tem uma aposentadoria do Instituto Goethe; e os amigos, garante, não abandonaram o maestro em momento algum. Menos mal!

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