13.2.03




José Lewgoy, Harry Potter e outros personagens

Olhando assim de longe — aliás, de perto também — ninguém podia ser mais mal-humorado do que José Lewgoy. A diferença é que, de perto, a gente podia apreciar o que se escondia por trás daquele (falso) jeitão de poucos amigos: um homem de cultura com um senso de humor extremamente sofisticado, uma história de vida que parecia (e era) coisa de cinema, uma curiosidade insaciável e um prazer quase infantil em descobrir novidades. Sobretudo, em descobri-las antes dos outros.

Em mais de 20 anos de convivência, não me lembro de ter visto mais do que dois ou três filmes antes que ele, que — sempre que a agenda de gravações permitia — fazia questão de assistir à sessão de estréia do que quer que entrasse em cartaz, de fitas em preto-e-branco de diretores alternativos do Quirguistão a megaporcarias de Hollywood.

Conversar sobre cinema com ele era uma das boas coisas da vida, não só por causa do seu conhecimento enciclopédico e das suas observações freqüentemente demolidoras, mas também porque ele pertencia à espécie mais radical de cinéfilo, aquela que gosta até (eu quase diria sobretudo) de filme ruim.

Claro: imaginem quantas oportunidades de justa indignação não oferece uma bomba como, digamos, “Pearl Harbor”?! Não, Lewgoy não perdia um filme ruim por nada nesse mundo. Por outro lado, descobria pequenas jóias a que jamais assistiríamos sem a sua insistente recomendação. Ele gostava genuinamente de compartilhar maravilhas, e o fazia com a mesma disposição com que trucidava material de quinta.


Com livros era, compreensivelmente, mais seletivo, mas igualmente curioso e antenado. Sua última paixão literária foi “Harry Potter” — uma das poucas coisas, aliás, que consegui descobrir antes dele. Comecei a ler a série assim que o primeiro volume foi publicado nos Estados Unidos, e fiquei no maior entusiasmo: aquilo era muito bom! Comentei o assunto num dos nossos almoços de sábado, e ninguém se interessou muito. Imagina, um best-seller infantil, que idéia...!

Mas, na semana seguinte, o contingente de apóstolos de “Harry Potter” ganhou a adesão do José Lewgoy, que leu o livro de uma sentada só e estava louco para ler a continuação. A partir daí fomos lendo os outros volumes mais ou menos ao mesmo tempo, igualmente encantados. Ele — claro! — viu o filme bem antes de mim. Gostou muito. E ficou no auge da felicidade quando o amigo Gravatá lhe trouxe de Kiev, no ano passado, o DVD do filme em ucraniano, que, junto com o ídiche, era a língua dos seus pais. Falava as duas, além de inglês, francês, italiano, russo e alemão.

Quando morreu, o livro que estava na mesinha de cabeceira a seu lado, no hospital, era a edição inglesa de “Harry Potter” IV, o melhor de todos, que estava relendo.


Os porteiros do Edifício Princesa da Lagoa, onde, do apartamento 303, Lewgoy tinha a gloriosa vista da foto acima (que fiz da sua sala, há alguns meses), estão inconsoláveis. Não só perderam o mais célebre morador do prédio, mas — principalmente — o mais generoso, que, apesar de ter lá as suas manias e esquisitices, retribuía em grande estilo aos pequenos serviços do cotidiano, do táxi capturado em alta velocidade na Curva do Calombo às lâmpadas trocadas no hall.


Em quase tudo o que foi publicado, exibido e dito a seu respeito nos últimos dias, foi ressaltada, à exaustão, a imagem de Eterno Vilão do Cinema Nacional, herança dos velhos tempos das chanchadas. Isso me perturbou muito. Não por causa da imagem de vilão, de que ele até gostava, mas por causa da extrema simplificação embutida neste rótulo. A verdade é que José Lewgoy tinha uma densidade atômica infinitamente maior do que qualquer personagem que jamais lhe deram para interpretar.

Com todas as honras e homenagens que recebeu, não consigo me livrar da melancólica sensação de que ele foi mais um dos gigantes que o Brasil não soube, não quis ou não pôde aproveitar. O que o público viu de José Lewgoy, em quase 60 anos de carreira, foi apenas a ponta de um iceberg de conhecimento, sensibilidade e talento.

Repetindo um velho clichê, o Brasil ficou mais pobre com a sua morte; mas o que desperdiçou ainda durante a sua longa vida ninguém poderá jamais aquilatar.


Por coincidência, no mesmo dia da morte do Lewgoy, recebi um apelo de amigos pedindo socorro para a Polytheama, locadora de vídeo do coração de 11 entre dez amantes de cinema cariocas, que está prestes a fechar por falta de recursos. Júlio César Miranda e sua mulher, Lúcia, cuidam sozinhos do precioso acervo de cinco mil títulos (onde podem ser encontrados aqueles filmes que a gente não acha em nenhum outro lugar), não têm dinheiro para publicidade e estão perdendo a guerra contra as blockbusters da vida. Eles atendem pela internet ou pelo telefone 2554-8017; os filmes são entregues em domicílio, em toda a Zona Sul.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 10.02.2003)

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