12.10.01

Sonhos desfeitos


Estou odiando o noticiário. Qualquer noticiário de guerra me irrita ao extremo, por lembrar que animal idiota é o ser humano, que criatura primitiva e desprovida de compaixão e sensibilidade social. Mas o noticiário desta guerra, particularmente, está tendo um efeito deletério sobre uma parte fundamental dos meus sonhos: Islamabad, Kendahar, Kabul -- desde criança, esses sempre foram nomes mágicos para mim, cidades de mistério e intriga, onde aconteciam os melhores enredos do mundo. Passei muitas e muitas horas refugiada em romances de aventura onde cada uma delas era mais bonita e resplandescente do que a outra, todas cheias de metafísica, tapetes, tâmaras e objetos de cobre, numa sensação não muito diferente da que tomou Álvaro de Campos, aka Fernando Pessoa:

(....)
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...
(....)

Ou ainda este outro eco do Oriente exótico e altamente refinado de Baudelaire:

(....)
Des meubles luisants,
Polis par les ans,
Décoreraient notre chambre ;
Les plus rares fleurs
Mêlant leurs odeurs
Aux vagues senteurs de l'ambre,
Les riches plafonds,
Les miroirs profonds,
La splendeur orientale,
Tout y parlerait
À l'âme en secret
Sa douce langue natale.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.
(....)

Pois é. As minhas cidades mágicas nunca mais serão possíveis.

PS -- Aos não-francófonos, perdão pela citação, mas não achei nenhuma tradução do poema. E não, não se preocupem, este blog não tem a menor intenção de fazer citações em grego, latim ou farsi. Digamos que o Baudelaire foi uma extravagância ditada pela melancolia. Pronto. Já passou.



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