22.10.01





A RIAA mostra a que veio



Entre os seres mais desprezíveis da face da terra estão aqueles tipos pestilentos que se aproveitam da miséria alheia para faturar algum: o crápula que tira a carteira do bolso do sujeito que acabou de morrer no meio da rua, por exemplo, ou o biltre que saqueia o apartamento de vítimas de terremoto. Ou a RIAA, a famigerada Recording Industry Association of America, que, sem qualquer espécie de escrúpulo, tentou se aproveitar da legislação antiterrorismo em trâmite no congresso americano para se garantir, por lei, o direito de hackear nossos computadores e apagar arquivos.

Para quem vem acompanhando a atuação desta abjeta associação, isso não chega a ser surpresa. Em todas as etapas do caso Napster ela sempre jogou da forma mais suja possível, sempre brandindo o lábaro dos direitos autorais para se passar por ilibada defensora da classe artística.

Mas para quem achava que os usuários de MP3 eram — como a RIAA sempre fez questão de pregar — um bando de piratas sem noção de bem ou de mal, a última manobra de Hilary Rosen & Cia. foi um choque. Até David Coursey, o AnchorDesk da ZDNet (com quem nunca simpatizei e a quem parei de ler depois do 911 para não me irritar além do estritamente necessário) ficou abalado. E olhem que ele é pró-establishment, pró-Microsoft, anti-Napster e anti-PGP:

“Num momento em que a nossa nação precisa tomar sérias decisões em relação à restrição das liberdades civis no combate ao mal, a RIAA devia ter tido o bom senso de ficar quieta”, escreveu ele na quinta-feira passada. “O Napster e similares, ainda que fora da lei, saíram da pauta de preocupações. Usar esta dramática mudança de prioridades como ocasião para inserir parágrafos egoístas na lei antiterrorismo chega a ser inacreditável”.

Sorry, baby, mas só é inacreditável para você, que sempre acreditou nas boas intenções não só da RIAA, mas de toda a parafernália legal que vem se armando nos EUA contra os usuários e a internet, em nome de “boas causas” (como o combate à pedofilia ou a defesa dos direitos autorais), mas servindo, na verdade, a interesses totalmente escusos.

Nisso é que dá não usar a cabeça para pensar, e achar que tudo o que é legal é legal. Sinto, mas não é não. O AI-5 era legal; o apartheid foi lei nos EUA e na África do Sul até outro dia; e o próprio Holocausto estava solidamente amparado pela legislação nazista.

Claro que quem levantou a bola das más intenções da RIAA não foi David Coursey, mas sim Declan McCullagh, da Wired. Ele saiu com a notícia bombástica na segunda-feira, apoiado numa cópia da emenda que a RIAA queria, assim como quem não quer nada, atochar no USA Act. De acordo com a emenda, detentores de direitos autorais (aí incluídos filmes e e-books) sequer poderiam ser responsabilizados civil ou criminalmente pelos danos que viessem a causar em equipamentos alheios ao hackeá-los, ou invadí-los de qualquer outra forma, no intuito de “razoavelmente impedir ou prevenir a pirataria eletrônica”.

Não é o suprassumo do mau-caratismo, para me ater a uma expressão permitida em casas de família?! Possivelmente inspiradas em 007, que tinha licença para matar (ainda que errasse o alvo e liquidasse a pessoa errada) a RIAA, a MPAA e outras instituições malsãs passariam a ter licença legal para invadir nossas máquinas, delas apagando todos os MP3 e/ou outros arquivos que porventura lhes desagradassem. Se com isso mandassem para o espaço a tese de doutoramento ou a planilha da empresa, bom, que diabos, isso seria, apenas — para usar o jargão do momento — collateral damage.

Afinal, não se faz uma omelete sem quebrar uns ovos.

(O Globo, 22.10.01)

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