Dois grandes absurdos
Eu sei: eu deveria falar do XP, mas confesso que me falta conhecimento de causa. Com os computadores daqui de casa desativados por causa da obra, estou reduzida ao Thinkpad 560Z, máquina deliciosa mas irremediavelmente defasada para um sistema operacional que só roda confortavelmente em 256Mb RAM. Mas sobre uma coisa, porém, tenho que falar — e não, não é sobre a ativação obrigatória. É um pequeno trecho da licença de uso da mais recente versão do Windows Media Player, aquele aparentemente inofensivo programeto que a gente baixa de graça para ouvir música, ver filmes e outros que tais. A licença de uso é, como todos sabem, aquela lengalenga que acompanha cada instalação, e que a gente deveria, em tese, ler cuidadosamente antes de clicar na caixinha que diz “Aceito”.
Bom. O colunista Dan Gillmor, do SF Gate (disparado o meu colunista de tecnologia americano favorito), se deu ao trabalho de fazer o que nós todos deveríamos fazer e, lá para as tantas, descobriu este parágrafo:
“Você concorda que, para proteger a integridade de conteúdo e software protegidos por gerenciamento de direitos digitais (Secure Content), a Microsoft pode realizar updates relativos a segurança em componentes do sistema operacional que serão automaticamente baixados para o seu computador. Esses updates podem desabilitar a sua capacidade de copiar e/ou tocar Secure Content, e usar outro software em seu computador. Se fizermos algum update de segurança, envidaremos esforços razoáveis para postar avisos num website explicando o update”.
Leram direitinho? Entenderam o que significa? Cliquem naquele “Aceito” e, daqui para a frente, corram o risco de ter a M$ dentro de suas máquinas, fuçando a configuração e estragando programas a seu bel-prazer. Isso, se feito pelo garoto do vizinho, é crime cibernético, e o garoto vai em cana como perigoso hacker. Feito pela Microsoft, é uma tentativa absolutamente legítima de defender direitos autorais, seus e dos outros. Então tá.
Escreve o leitor Mário Araújo sobre outro assunto muito sério:
Cora, não sei se você conhece ou já ouviu falar nos jogos de RPG (Role Playing Game). Caso não conheça, apenas para resumir, são jogos em que uma pessoa (geralmente chamada de “mestre”) narra uma história para os jogadores. Cada jogador monta uma ficha do seu personagem, onde define atributos físicos, mentais, o que faz, quais são suas habilidades, e assim por diante. Baseado nisso, o mestre conta uma aventura em determinado cenário, seja ele contemporâneo, medieval, sci-fi, western, por aí vai.
Algum tempo atrás, uma pessoa foi assassinada brutalmente em Teresópolis, e o jornal “O Dia”, que cobriu o caso, disse que foram achados livros de RPG no local, descrevendo-os como “livros de magia negra e satanismo”. Isso porque os livros em questão eram de um RPG chamado “Vampire: The Masquerade” — que, obviamente, fala de magias, sangue e vampiros, como qualquer outro livro de vampiro.
Esse fato causou revolta geral na época, principalmente pela falta de objetividade e de informação da reportagem. Agora, na semana passada, assistindo ao “Jornal da Globo”, nova decepção com a imprensa: uma menina foi assassinada em Ouro Preto, e foram encontrados livros do jogo “Advanced Dungeons & Dragons” perto dela. Esse RPG é um jogo de fantasia medieval com elfos, dragões e seres mitológicos.
Pois o delegado de Ouro Preto, que é no mínimo um desavisado, deu a seguinte declaração: “Estamos investigando, pois esse é um jogo onde tem de haver uma definição, e a definição pode ser a morte”.
Ora, isso prova a total falta de preparo dessa pessoa! Alguém que entendesse inglês poderia pelo menos se dar ao trabalho de traduzir os livros para que ele os lesse antes de falar tamanha bobagem. E, obviamente, o “Jornal da Globo” usou chamadas do tipo “o jogo imita a morte”.
O pior disso tudo é que saíram reportagens no início da semana afirmando que o sr. Fernando de Almeida Martins (Procurador da República!) foi para Ouro Preto acompanhar as investigações... Caso você não se lembre, foi esse procurador quem, depois do acontecido naquele cinema em São Paulo, onde um homem matou várias pessoas, proibiu diversos games do tipo “mire e atire”, como, por exemplo, o “Duke Nukem”. Ele já disse que, se forem mostradas evidências de que o jogo levou ao crime, vai tomar providências para proibir o jogo. Pode?!
O que realmente me entristece é a total falta de conhecimento da mídia em relação ao RPG. Ninguém explica como é o jogo, ninguém procura ninguém que jogue para ao menos explicar a mecânica do jogo...
Um amigo fez um site em que há links para as reportagens e explicações sobre o que é o RPG. Quem sabe assim, com tudo mastigadinho, mídia e autoridades evitem cair em ridículo.
(O Globo, 29.10.01)
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