18.10.01

Ponto final


A autora deste texto, Ivone C Benedetti, é uma das maiores autoridades em tradução no Brasil. Acho que, com estas observações, enviadas para uma lista de tradutores, ela resolve, de uma vez por todas, a dúvida lingüística do momento: antraz ou carbúnculo?


"Na verdade já estamos convencidos de que, cientificamente, é melhor usar carbúnculo, mas existem outros dados, outras realidades que precisam ser considerados numa lista de tradutores de ciências humanas e literatura.

O que deu origem à confusão não é exatamente uma questão médica. Quem trabalha com medicina sabe direitinho do que está falando, e diz que os jornais estão "errando". Do ponto de vista da história da medicina, porém, os jornais não estão "errando" no sentido de confundirem sentidos de "cognatos", como quem traduz eventually por eventualmente. Eles estão apenas perpetuando uma ambigüidade que já vem de longuíssima data, ou seja: a isso que se dá o nome de carbúnculo também se dá tradicionalmente o nome de antraz.

Quer dizer, tradicionalmente sempre houve dois nomes para uma mesma doença (a provocada pelo tal Bacillus anthracis): carbúnculo e antraz. No entanto, existe só um nome para a doença provocada pelo tal Staphylococcus aureus: antraz. Logo, existem três nomes para duas doenças, e um desses nomes é comum às duas, sempre segundo a tradição (cheguei a enviar à lista o título de um livro de 1811 que ensina como curar o "carbúnculo ou antraz"). A distinção clara e científica, não sei por quê (já que é antiga), nunca se impôs para valer em termos lingüísticos. Provavelmente porque foram doenças surgidas e "catalogadas" em meios populares, antes de chegarem aos laboratórios; provavelmente porque houve grande interação entre os termos (fatores de imigração etc. etc.); provavelmente porque "anthracis" é "do antraz".

É interessante notar que essa ambigüidade não existe só em português. Ela existe também em italiano e em francês. Em suma, não se pode deixar de constatá-la. Por que não? Porque não podemos chamar de "ignorantes" aqueles que nela incorrem. Aí a questão se põe em termos de optar de vez por transferir para o plano lingüístico a distinção que parece já estar consolidada no plano científico. Só que, embora ela esteja clara no plano científico, não está clara no plano lingüístico. Vai dar trabalho convencer os jornais de que não devem usar a palavra antraz se ela é encontrada em vários compêndios respeitáveis como sinônimo de carbúnculo. Considerando-se então que a palavra antraz é bem mais curta... está feita a festa". (Ivone C Benedetti)



Nenhum comentário: